Módulos do Curso
FILOSOFAR AJUDA A VIVER curso liberado
- O EQUILÍBRIO
- INDEPENDÊNCIA INTERIOR
-
CONHECENDO A REALIDADE
- OBSERVAÇÃO E MAIS OBSERVAÇÃO
- PENSAR É ASSOCIAR
- PENSANDO O QUE PENSAR
- PENSAR COM A RAZÃO
- PENSAR COM ROTEIRO
- RACIONALISTAS E EMPIRISTAS
- ANTI-PODER
- NULLIS IN VERBA
- MALARIOTERAPIA
- FORNOTERAPIA
- A MENINA DA FOTOGRAFIA
- SANTO MAO
- REVOLUÇÃO CULTURAL
- PSEUDOCIÊNCIA
- FREUD HOJE SERIA FREUDIANO?
- OBEDIÊNCIA
- A ÉTICA DO CRENTE
- A UTILIDADE DA FANTASIA
- O SABER HUMILHA
- LIÇÕES
- SELECIONANDO O QUE É ÚTIL
- POR UM SENTIDO NA VIDA
- SOBRE O SENTIDO DA VIDA
-
ALIVIANDO O MEDO DA MORTE
- MÉDICO DOS MORTOS
- PROGRAMADOS PARA O RISCO
- CLASSIFICAÇÃO DOS PACIENTES TERMINAIS
- ETAPAS QUE PRECEDEM O FIM
- A IMAGINAÇÃO E A RELIGIÃO NO ALÍVIO DO MEDO
- O MUNDO INTERIOR
- A VONTADE DOS DEUSES
- A CAUSA DAS DOENÇAS NÃO ESTÁ NOS DEUSES
- RELIGIÃO COMO BUSCA DO SUCESSO
- SE É ÚTIL CRER
- QUANDO É ÚTIL NÃO LEMBRAR
- A MORTE PARA SARTRE
- A MORTE PARA EPICURO
- A MORTE TEM A CARA QUE A GENTE DER A ELA
- A PERDA IMAGINADA
A ÚNICA PERGUNTA IMPORTANTE
A ÚNICA PERGUNTA IMPORTANTE
Aos dezenove anos, viajando com colegas, quase sem dinheiro, em meio a outros jovens latino-americanos, escutava conversas aqui e ali. Na fronteira da Argentina com o Chilhe ouviu questionamentos que ficaram.
Os mochileiros hablan num castelhano difícil, muito rápido e entrecortado por gargalhadas. Acostumo o ouvido e consigo compreender que Tolstoi está sendo citado: “A única pergunta importante para nós: o que devemos fazer e como devemos viver?” A resposta gira em torno de Confúcio e do confucionismo.
A pergunta de Tolstoi parece-me pertinente a quem está a viajar sem rumo nem cuidado. Estranho é buscar a resposta em alguém tão distante na geografia e no tempo.
Caminho pela neve com dificuldade procurando lembrar o que já lera sobre Confúcio. Após ter muita dificuldade em localizá-la, entro na cabana com alguns pães queimados. Meus colegas haviam transformado uma escada em fogo. Improvisamos nosso leito junto à lareira. Frio nas costas durante toda a noite. Confúcio não me sai da cabeça. O sair de casa, o viajar por lugares íngremes e silenciosos estimula o filósofo que todos temos dentro de nós. Majestosas montanhas de neve nos obrigam a refletir sobre a condição humana. Como viver bem levando em conta nossa condição?
Passado algum tempo, voltei a meu país e a minha rotina. Isto na maneira de dizer, porque meus pensamentos continuaram a andar por aí, não mais de carona em comboio militar e nem sempre em viagens de carro, ônibus, trem, navio e avião. Mas muitas, muitas vezes na carona de um escritor, levado por um daqueles que possuem o hábito de filosofar.
Contava dezenove anos quando li que:
(a) Não convém crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
(b) Não convém a um aluno concordar cegamente com seu professor.
Aprendi as receitas que deram início à filosofia, rompendo com a tradição religiosa que em tudo via a vontade dos deuses e que transmitia uma teoria pronta, acabada e inviolável.
Realidade ou imaginação, a idéia de que a vida continua após a morte é muito bem vinda e será sempre bem vinda. Torço por ela, com todas as forças. As religiões são necessárias por organizarem nosso desejo de viver para sempre.
Porém, “se nem tudo se deve à vontade dos deuses”, vamos tentar criar soluções terrenas.
Há mais de dois mil e quinhentos anos o cérebro humano realizou esta dupla proeza de:
(a) Procurar entender o mundo sem recorrer à religião.
(b) Ensinar as pessoas a pensarem por si mesmas.
O curioso é que a proeza ocorreu tanto no ocidente como oriente e no mesmo século VI a.C.
NÃO FAÇAS AOS OUTROS...
NÃO FAÇAS AOS OUTROS...
Confúcio (551-479 a C) da província chinesa Lu, desenvolveu uma doutrina prática que visava ensinar as pessoas a viver 
bem. Não era místico, não falava em ser supremo ou em vida após a morte.
É dele a sugestão: “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti”. Seria este ensinamento de Confúcio tema de debate dos mochileiros na guarita do exército argentino? O que eu fiz a eles gostaria que fizessem a mim? Esconder a existência da cabana...?
UM ÚNICO ELEMENTO
UM ÚNICO ELEMENTO
De que é feito o mundo? Tales, que nasceu e viveu próximo ao golfo de Mandalya, na cidade de Mileto (hoje Milas, Turquia), considerado o primeiro filósofo do ocidente, respondeu: “De um único elemento”. Conclusão nada óbvia e certeira: sabemos que todos os objetos materiais são redutíveis à energia. Tales previu a eclipse solar que realmente acabou ocorrendo no ano de 585 a. C.
O DESAPEGO
O DESAPEGO
Buda (563-483) nasceu no principado indiano de Kapilavastu, na região da Cordilheira do Himalaia, no sul do atual Nepal. O nome de sua cidade significa a “morada de Kapila”. Kapila representava uma forma de pensar nem sempre concordante com a religiosa, que dizia, inclusive: “Uma das mais perniciosas servidões humanas é a daqueles que tem de viver dando presentes aos sacerdotes”.
Buda, Sidarta Gautama, abandonou a riqueza da casa paterna e saiu a caminhar junto ao povo. Não acredita em um deus criador nem na imortalidade. Acreditava que a alma reencarnava algumas vezes até se extinguir no estado chamado de Nirvana, quando estivesse purificada de todos os desejos egoístas dos seres humanos.
O sofrimento está relacionado ao nosso infinito apego às coisas, às pessoas, à cobiça, a um insaciável querer e desejar: “O homem que expulsando todos os desejos, vive livre de apegos... alcança a tranqüilidade”.
Buda recebe em sua casa em Jetavana uma mulher que vagava pelas estradas carregando um bebê morto nos braços e implorando que algo fosse feito para recuperar a saúde de seu filho doente. Buda explica-lhe que o remédio para a cura seria feito com quatro ou cinco sementes de papoula que ela teria de encontrar em casas de famílias que nunca foram tocadas pela morte. Na sua busca, a mulher percebe o ensinamento de Buda que diz: “Você não está só: na vida é inevitável a experiência de sofrimento; é condição humana”.
UMA OLHADA CRÍTICA
UMA OLHADA CRÍTICA
Tales, Confúcio, Buda, todos no mesmo século a discutirem o viver bem sem “ter de dar presente aos sacerdotes” seria mera coincidência histórica? A humanidade, nesta época, já se tornara forte o suficiente para refletir sobre sua condição com especulações terrenas, órfã dos deuses?
Se os filósofos, ao longo da história, previram tantas coisas, acertaram tanto, a começar com Tales e a eclipse solar de 585 a C., certamente não será perda de tempo dar uma olhada nas receitas que sugeriram para o viver bem particularmente no que se refere as questões que a ciência, pelo menos por enquanto, não chegou lá.
Uma olhada crítica, pois esses professores esperam que nós, seus alunos, criemos nossas próprias receitas.
O PONTO INTERMEDIÁRIO
O PONTO INTERMEDIÁRIO
Estou no Centro de Convenções Pompéia em São Paulo. Bebo um cafezinho.
- Chega de namorar homem perfeito... – ouço voz feminina em mesa próxima a minha.
De soslaio, espio. Filosofam duas amigas. Não me admiro que filosofem. Já havia passado décadas desde que constatara, em plena guarita de um quartel argentino, que o filosofar é um hábito universal e humano.
Ambas são bonitas, vestidos justos e coloridos.
- ...que de tão atencioso quer até me carregar no colo. Prefiro aqueles que por vezes são desatenciosos e irritados. São o que são e nada de grave tem a esconder.
De bondade exagerada, penso comigo, desconfie. Quando uma pessoa te elogiar muito, se mostrar perdidamente apaixonada por você... cuidado! “Amor demais” não é bom. Quem já não ouviu falar da fórmula: para trair sem despertar desconfiança basta tratar sua (seu) parceira(o) como uma rainha (rei). “Amor demais” é amor por si mesmo ou outras coisas mais. Não é natural.
Lembrei de Aristóteles (384-322 a.C) porque há bem pouco havia lido sobre o seu justo meio: “Uma virtude (qualidade) é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um vício (defeito)”.- É o doutor? – ouço no telefone a voz calma, conhecida, do marido de uma antiga paciente.
Confirmados os interlocutores, continua:
- A minha mulher permaneceu bem todos estes anos, por isto não lhe procuramos mais.
Casal de meia-idade, sem filhos, casa junto a uma lagoa azul (talvez o azul seja minha imaginação). Normalmente tão tranqüilos quanto a bem conservada fazenda que habitam desde sempre.
- Doutor, o problema está voltando.
- O que está lhe fazendo pensar assim?
- Doutor, a minha mulher começou a me tratar bem demais.
- Bem demais?
- Ela está me tratando bem demais, doutor.
- Então não vamos perder tempo. Vamos marcar a consulta já para amanhã de manhã.
Em tudo há que se ter equilíbrio. Tratou mal demais, alguma coisa não anda bem com quem assim age. Está frustrado com algo? Triste? Tratou bem demais?... O marido de minha paciente não se iludia mais. Eram os primeiros sinais de uma crise maníaca do Transtorno Afetivo Bipolar. Se nada fosse feito, aquele tratamento maravilhoso, apaixonado, logo seria substituído por fúria perigosa tipo um furacão incontrolável.
No filósofo se concentram e se cristalizam sentimentos e pensamentos que, de forma vaga e difusa, são comuns as pessoas da comunidade a que ele pertence. No caso, à comunidade humana, pois o marido “tratado bem demais”, eu perguntei a ele, nunca lera sobre o justo meio de Aristóteles.
Repito a receita do filósofo: uma virtude é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um vício. Assim sendo, a generosidade é o meio entre a prodigalidade e a mesquinhez. A coragem, é o meio entre a imprudência e a covardia. O amor-próprio, entre a vaidade e a auto-humilhação. A modéstia, entre o exibicionismo e a timidez.
Para Aristóteles só existe o mundo que vivenciamos. E é só acerca dele que podemos filosofar. Passou sua vida a observar o mundo real, a observar as pessoas que nele vivem. Constatou, entre outras coisas: “Os homens são bons de um modo, mas maus em vários”. Alguém discorda?
O FATO E A PALAVRA
A PALAVRA E O FATO
Aristóteles foi discípulo de Platão, filósofo que afirmou: "A 
palavra precisa concordar com o fato".
- O meu marido só presta para trazer dinheiro para dentro de casa – queixa-se irritada a jovem esposa.
- Nada mais?
- Para ele, eu não tenho valor algum.
- É fato o que você está me falando?
- ?
- É fato? – insisto.
Após um silêncio prolongado, reconsidera:
- É claro que ele não é só o dinheiro dele... Óbvio que se fosse assim eu nem teria casado com ele...
- Portanto, um pedaço daquilo que você disse é fato. Mas e o outro pedaço?
- Meu marido diz que eu posso acusá-lo dele ter falado irritado para que eu baixasse o som da tevê, por exemplo, mas que eu não posso dizer que para ele eu não tenho valor nenhum.
- O que vai além dos fatos...? Um sentimento mais antigo?
- De antes de eu conhecer meu marido?
- Sim, de antes.
- Bem... até admito que sim. Com a minha família eu já sentia algo parecido. Sou nova, mas a história da minha vida é um pouco comprida...
Conhecerei uma história de vida, mais uma, graças a receita de Platão, o mestre de Aristóteles. Gosto de repeti-la: “A palavra precisa concordar com o fato”.
SOMOS OU ESTAMOS?
ESTAMOS VERSUS SOMOS
Estamos sempre nos tornando. Nunca somos no sentido de prontos e acabados. Platão afirmou: “Tudo está se tornando nada é”.
O homem é o único animal que ri e chora, pois é o único a sentir a diferença entre o que ele está sendo e o que ele deveria estar sendo. Quanto a equilíbrio, portanto, há que tê-lo também naquilo que podemos esperar de nós mesmos.
LIÇÕES
LIÇÕES
1. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
2. Não concordar cegamente com seu “professor”.
3. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
4. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
5. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
6. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
7. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
8. A palavra precisa concordar com o fato.
9. Tudo está se tornando nada é.
SÓ COM MUITA FILOSOFIA
SÓ COM MUITA FILOSOFIA
Férias na faculdade de medicina: uma mochila, quase nada de dinheiro, muita carona, correr mundo afora energizado por algumas fantasias.
Lembro-me da vez em que conseguimos uma mala de plástico que não resistiria mais do que uma curta viagem. Passamos gumex nos cabelos a ponto deles parecerem de tamanho aceitável pelos guardas bolivianos. Estávamos no norte da Argentina. O Delfino e eu cruzaríamos a fronteira com aquela mala. O Aragonês, clandestinamente pela mata, atravessaria a fronteira carregando as mochilas. O reencontro se faria no primeiro povoado.
Um guarda da aduana argentina nos trouxe à razão: o Aragonês seria metralhado; Delfino e eu teríamos longos anos de prisão para provar que tamanha vontade de entrar naquela região miserável se devia a razões puramente inconscientes e inconseqüentes. Por ali, não fazia muito, haviam assassinado o Chê, ex-estudante de medicina, e sua guerrilha. De novo estudantes de medicina se infiltrando naquelas matas?!
Já estávamos há vários dias estacionados em Pocitos. Bebíamos ginebra com os outros mochileiros. Matávamos o tempo a contar piadas, a jogar cartas com os guardas da aduana argentina e a elaborar planos, fantásticos planos, para chegar a Santa Cruz de La Sierra. Acendíamos fogo, comíamos em nossas panelas amassadas e trocávamos nossas histórias. O ambiente era bom, ríamos das agruras da vida.
Havíamos chegado lá, vindos do chaco argentino, num dia ensolarado. Dez de janeiro de 1972, segunda-feira. Sei disso porque conservo até hoje o rótulo de uma Ginebra Legítima Llave, fabricada pelos destiladores Peters Hermanos e em cujo verso está escrito: “Uma tarde em que estávamos sem destino certo, resolvemos tomar este litro para aguardar com mais calma a situação definir-se. Pocitos, lunes, 10/01/72”.
Pela manhã havíamos tido uma grande recepção. Informamos nossa intenção de transpor imediatamente a fronteira. Guardas e mochileiros, quase em coro, nos estimulavam, faríamos um passeio “hermoso”. Estranhamos quanto foram gentis em despedidas e desejos de boa estada na Bolívia. Que fôssemos nos banhar no lago Titicaca.
Entre as duas aduanas havia um plano de cerca de cento e cinqüenta metros. Olhamos para trás e vimos todos agrupados como naqueles antigos quadros de família. Abanavam, alguns com lenço na mão. Que se passa?
Logo saberíamos. Em poucos minutos estávamos de volta, vendo quanto “nossa família” se divertia. Toda aquela concentração de mochileiros se devia à recusa hostil do governo da Bolívia em receber mochileiros, cabeludos e barbudos. Mochileiro e guerrilheiro, é tudo a mesma coisa, vociferavam os bolivianos.
O mesmo guarda argentino que nos trouxe à razão, usou sua influência com determinada autoridade da aduana boliviana: cruzaríamos sem visto para o outro lado, com a combinação verbal de que não seríamos caçados se voltássemos no mesmo dia.
Assim o fizemos numa manhã bem cedo. Não longe da fronteira alcançamos uma pequena cidade boliviana Entre Rios? Sanandita? Não lembro mais. Muito pó e muita pobreza. Muitíssima pobreza, disto eu lembro. Agora, bastava colocar cartas no correio, a prova de que pisáramos solo boliviano. Feriado no município, correio fechado. O que fazer?
Andamos para lá e para cá em meio à poeira e à miséria. Poeira e miséria, as únicas coisas que por lá encontramos. Não faltou quem se prontificasse a, no outro dia, despachar nossas cartas. Cartas para as namoradas, cartas que nunca chegaram. Um rapaz, mais ou menos de nossa idade, que se movimentava sempre seguido por um menino pequeno, foi o escolhido. Contou e recontou as moedas. Uma miséria.
Fiquei com a sensação de que ele não as gastaria com os selos. Mesmo jovem, o rapaz dava a impressão de ser maduro, sofrido, responsável o suficiente para não desperdiçar aquele precioso dinheirinho na compra de selos.
Na aduana argentina, agradecemos aos guardas. Rejeitamos o gole oferecido pelos colegas mochileiros. A ginebra perdera o sabor, dela só me interessei pelo rótulo. Na despedida, confessei ao guarda amigo que eu acabara de levar uma bofetada da vida:
- Tamanha penúria existe! – exclamei – Como conseguem ter ânimo para continuar?!
- Solo con mucha filosofia – disse ele por entre dentes.
DEUS NÃO TE VÊ
DEUS NÃO TE VÊ
Só bem mais tarde vim a conhecer Epicuro (341-270 a.C.) e encontrar em suas idéias o ânimo para continuar a viver em circunstâncias como aquelas do jovem dos selos.
Há dois mil e trezentos anos, constatou o filósofo que, a medida que o ser humano não tem só o mundo exterior com o qual ele se relaciona mas tem também todo um rico mundo interior, ele não está necessariamente a mercê dos sofrimentos desta vida.
Suas reflexões visavam auxiliar às pessoas a bem utilizar seu espaço íntimo. Navegando com inteligência em seu universo interior, seria possível encontrar prazer mesmo na adversidade.
O processo de se voltar para si, de aprender a navegar com destreza nossa nau interior não é o que se faz hoje nas psicoterapias?
Só alcançaremos sucesso, acreditava ele, se vivenciarmos o processo na relação com outra ou outras pessoas. Ora, ninguém faz uma psicoterapia sozinho ou lendo um livro.
Para Epicuro, a terapia se fazia na relação com amigos lúcidos que também desejavam viver o mesmo processo. O filósofo reunia as pessoas em encontros que lembram as atuais psicoterapias de grupo, nos quais desenvolvia seu programa de autocomando interior: autarcia.
Tudo principiava com a percepção da realidade como ela é. O conhecimento aclarador permite a superação do obscurantismo, inclusive o religioso. Onde é território humano é só humano. Quanto aos deuses, Epicuro consegue mantê-los em segundo plano sem negar sua existência (teria sido perigoso para ele se o fizesse). “Deus - perguntava o filósofo - quer evitar o mal mas não consegue? Então é impotente, ou seja, não existe deus. Deus consegue evitar o mal mas não quer? Então é malévolo. Consegue e quer? Não pois o mal existe”. A única saída: “Deus está muito longe e não tem a mínima vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço dos afazeres humanos, deus não se interessa por nós”.
Epicuro conseguia, assim, aliviar importantes temores desencadeados pelos sermões ameaçadores das religiões da época. Da época? Na minha infância, estudava em colégio católico e que frase eu meus colegas líamos todos os dias afixada num quadro de vidro a nossa frente? “Deus te vê”.
“Nada – afirmava o filósofo - temos a esperar e nada a temer. Para nós, é como se não existissem deuses”.
SE VOCÊ NÃO DEIXAR
SE VOCÊ NÃO DEIXAR
A independência interior é possível: “Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em sua mente, ocupará seus pensamentos e sentimentos se você deixar”. Por isto, em seus grupos participavam até mesmo escravos. Até eles poderiam ser os donos de suas mentes.
Epicuro nestes encontros insistia: “Para viver bem precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes”.
Deni..., repórter da BBC, penetra nos estúdios de uma TV exclusivamente de shoptime em Tampa, na Flórida. Um vendedor atrás do outro se apresenta diante das câmeras e uma seqüência interminável de produtos são oferecidos aos telespectadores. Dezenas de telefonistas aguardam ligações dos compradores que são feitas imediatamente após a veiculação da publicidade, de forma impulsiva. Deni faz às vezes do vendedor de um cortador de papel e vende duas centenas de unidades em questão de segundos. Será que estas pessoas desejavam mesmo comprar o cortador de papel? Ou um “tirano” entrou em suas mentes? Que tal exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários como propôs Epicuro há muitos e muitos séculos?
Para o filósofo, devemos tentar ser os diretores de nosso imaginário. É possível sentir prazer em viver, mesmo em situações adversas. Para tanto, devemos selecionar imagens, substituir sensação de dor por lembranças prazeirosas, por fantasias criadas e controladas por nós e assim por diante.
Ao natural, fazemos isto. Lembro-me de uma vez em que um de meus filhos, bem pequeno, estava com medo de dormir porque na noite anterior havia sonhado com um monstro. Sugeri que ele deitasse e imaginasse a Dysneilândia. No dia seguinte, perguntado, disse:
- Adiantou, mas só um pouco.
- O que houve?
- Sonhei com um brinquedo de carrinhos. Só que em cada carrinho vinha um monstrinho. Mas era um monstrinho.
Para Epicuro, podemos sistematicamente aplicar o processo de substituir conteúdos ruins por conteúdos bons. Ou seja, não está em Epicuro a raiz da terapia cognitiva tão eficientemente praticada hoje em dia?
O rapaz do selo, onde encontrava ele um pouco de alegria?
LÂMPADAS APAGADAS NÃO ATRAEM MARIPOSAS
LÂMPADAS APAGADAS NÃO ATRAEM MARIPOSAS
Epicuro também se interessou pelos homens de vida pública. O político sempre sofreu de um pré-julgamento negativo de parte dos seus concidadãos. Quem deixa sua vida privada e entra na vida pública recebe rótulos muitas vezes injustos: ladrão, mentiroso...
O candidato discursava num português sem plural: “Vou dar muitas coisa depois de eleito! Dezena de casa! Centena de emprego!” Um cabo eleitoral aproxima-se e sussurra em seu ouvido: “Emprega o plural.” E o candidato: “Depois de eleito, vou empregá o Plural! Vou empregá a mulhé do Plural! Vou empregá a mãe do Plural!”
Apenas a minoria dos políticos é do tipo que promete empregar a mãe do Plural. A maioria é honesta tanto quanto somos nós em nossas vidas privadas. Basta observarmos o caráter dos políticos que conhecemos pessoalmente.
A cada “festa da democracia” invariavelmente sou procurado em meu consultório por um punhado de homens e mulheres estressados, combalidos pela exposição pública de suas vidas 
nas disputas eleitorais. Um deles, certa vez, disse-me que doravante iria evitar a luz dos holofotes. Aprendera na prática que “lâmpadas apagadas não atraem mariposas”.
nas disputas eleitorais. Um deles, certa vez, disse-me que doravante iria evitar a luz dos holofotes. Aprendera na prática que “lâmpadas apagadas não atraem mariposas”.Não estamos diante de nenhuma nova constatação. Epicuro já afirmara que a vida pública era desgastante e perigosa e recomendava que se buscasse a realização na vida privada. “Se queres viver bem, viva incógnito” receitava como medida preventiva.
A MORTE NADA É PARA NÓS
A MORTE NÃO É NADA PARA NÓS
Para o filósofo, era possível aliviar até mesmo o medo da 
morte. Concordando com Demócrito, Epicuro pensava que tudo o que havia no universo eram átomos e espaço. Como os átomos não poderiam existir do nada ou simplesmente desaparecer, eles seriam indestrutíveis.
A vida será sempre uma história de átomos que se juntam e depois se dispersam. Um grupo de átomos particulares se junta para compor um corpo e uma mente na forma de uma única entidade, um ser humano, cuja dispersão final é inevitável. Mas essa dispersão não deve ser temida. A entidade que somos cessa de existir quando morremos e, portanto, não existe ninguém que venha a estar morto: enquanto existimos não há morte, e quando há morte, não existimos.
Tampouco a ninguém podem atingir os terrores com que tantas religiões ameaçam as pessoas após a morte. “A morte nada é para nós” - diz Epicuro - pois o que é dissolvido não tem sensação”. Veremos mais no módulo que trata do medo da morte.
SENHORES DE NOSSO DESTINO
SENHORES DE NOSSO PRÓPRIO DESTINO
Embora sujeitos aos poderes da natureza, que podem ser 
estudados cientificamente, temos ainda o livre arbítrio e somos, dentro de certos limites, os senhores de nosso próprio destino.
estudados cientificamente, temos ainda o livre arbítrio e somos, dentro de certos limites, os senhores de nosso próprio destino.
Epicuro usava a seguinte explicação para reafirmar nosso livre arbítrio: os átomos “caem” no espaço e se agrupam em entidades separadas. Na queda dos átomos há sempre a possibilidade do cliname, do desvio. O desvio está nas nossas atitudes.
E TEVE INÍCIO A PSICOTERAPIA
E TEVE INÍCIO A PSICOTERAPIA
As idéias de Epicuro foram divulgadas em uma poesia de Lucrécio (99-55 a C) intitulada “Da natureza das coisas”.
No século XIX arqueólogos encontraram nas ruínas da muralha de uma cidade soterrada descoberta na Turquia os dizeres:Não há porque temer os deuses.
Não há porque temer a morte.
É possível aliviar a dor.
É possível ser feliz.
Tratava-se do tetraphármakon de Epicuro.
Epicuro foi primeiro psicoterapeuta, é inegável que encontramos nele os fundamentos daquilo que praticamos hoje.
Para arrematar: já que a não-existência é o nosso destino inevitável, devemos fazer o melhor da única vida que temos. “A boa vida nesta vida, a felicidade neste mundo – complementa Epicuro - deve ser a nossa meta”.
LIÇÕES
LIÇÕES
1. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
2. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
3. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
4. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
5. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
6. Não concordar cegamente com seu “professor”.
7. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
8. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
9. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
10. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
11. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
12. A palavra precisa concordar com o fato.
13. Tudo está se tornando nada é.
OBSERVAÇÃO E MAIS OBSERVAÇÃO
OBSERVAÇÃO E MAIS OBSERVAÇÃO
No que se refere ao conhecimento, duas questões tiraram o sono dos filósofos: 1. Como conseguir mais conhecimento do que nossos sentidos e nosso pensamento expontâneo conseguem? 2. Se ele está sendo apresentado em sua forma verdadeira e precisa ou se está falsificado? Ou ainda, se o que se está apresentando como conhecimento verdadeiro e preciso não passa de uma crença manipuladora?
A primeira questão – meios de se chegar ao conhecimento verdadeiro - como sabemos, faz parte da lógica. As questões tratadas no segundo ítem - o bom uso ou o uso manipulador do conhecimento adquirido pelo exercício da lógica – faz parte da moral.
Aristóteles disse: “Todo o homem deseja naturalmente conhecer”.
Pois bem, estou em Kyoto e desejo, naturalmente, conhecer Hiroshima. Como fazer se não falo o idioma local?
Consigo junto a companhia de turismo que alguém escreva as seguintes frases em japonês: “Por favor”. “Leve-nos a plataforma de embarque para Osaka”. “Vamos a Hiroshima”. “Leve-nos ao museu da bomba atômica”. “Leve-nos a estação do trem bala”. “Leve-nos ao local de embarque para Kyoto”. “Quanto é?”
Descubro mais três turistas interessados e, texto na mão, inicio viagem. Sou o guia. Ou melhor, aquelas frases escritas numa folha cedida pelo Kyoto Royal Hotel, são o nosso verdadeiro guia.
Voltamos deprimidos pelo que vimos, mas contentes pelo sucesso da empreitada. Um pouco de conhecimento, representado pelas frases, nos permitiu mais conhecimento.
Noutra ocasião, em Tóquio, tomo o metrô e desembarco na estação da Universidade de Tóquio. Desejo visitar a Faculdade de Medicina. Ando em busca de informações sobre o Karoshi. Karo, significa cansaço. Shi, significa morte. A morte por cansaço no trabalho atinge cifras alarmantes no Japão.
Da estação do metrô ao portal da Universidade a caminhada é curta. Observo num mapa desenhado num painel a localização do prédio da medicina. Logo estou frente a uma construção antiga, imponente, de cor escura. Em sua frente, encontro um rapaz que julgo ser estudante. Tento obter informações com ele. Não encontramos nenhum idioma em comum. Quando estava desistindo, solto algumas frases em português. O rapaz estampa um sorriso e canta. Pasmem, canta “Garota de Ipanema”. Depois “A Banda” e outras mais. Não fala português, mas canta em português. Encontro ali um guia que me leva para dentro do prédio da faculdade e me apresenta alguns professores. Algum conhecimento em comum, isto é tudo.
Conhecer facilita o sobreviver, ninguém duvida disto.
O cérebro é o órgão desenvolvido pela seleção natural para captar a realidade, para conhecer. Para tanto utiliza suas capacidades de: atenção, percepção, memória, orientação e pensamento. Em psiquiatria, tais capacidades são chamadas de funções cognitivas.
Ivan Petrvich Pavlov (1849-1936), fisiologista russo, Premio Nobel em 1904, conhecido pelos estudos sobre os reflexos condicionados e sua aplicação na psiquiatria, mandou escrever em letras garrafais em seu laboratório de pesquisa: “Observação, observação e mais observação”. Ou seja, salientava ele o papel da percepção e da atenção na busca do conhecimento.
A importância da memória nós estamos percebendo mais do nunca nos tempos atuais. O desenvolvimento da informática proporciona um banco de dados nunca antes imaginado.
Todavia, nada é mais complexo que o pensamento.
PENSAR É ASSOCIAR
PENSAR É ASSOCIAR
Homens e animais se assemelham em algumas funções cognitivas: reconhecem objetos (percepção), sabem voltar para casa (orientação). Quanto à função pensamento, só o chipanzé se aproxima de nós. Só esta espécie e a nossa consegue pensar a ponto de ter consciência de si mesmos. O chipanzé reconhece a própria imagem no espelho. Todos o outros animais interpretam o reflexo como ameaça.
Foram os filósofos que procuraram desenvolver uma organização na forma de pensar que permitisse ao ser humana conhecer mais e melhor a realidade do que ocorria em sua forma expontânea. Ou seja, desenvolveram o pensar científico.
No início, tudo se resumia a instinto e hábito.
No processo de evolução, o cérebro consegue representar na mente um objeto. A esta representação se segue outra e assim sucessivamente. Por associação as representações acabam uma chamando outra. Aos poucos, superpondo-se aos instintos e aos hábitos, o cérebro desenvolve uma nova capacidade, a capacidade de pensar.
O pensamento primitivo, portanto, consiste basicamente na sucessão de objetos representados no cérebro que vão fluindo uns encadeados nos outros.
As associações se processam na mente por:
I – Lei da contiguidade espacial: duas ou mais idéias se associam porque correspondem a fatos ou estímulos recebidos no mesmo lugar. Se nos recordamos do céu, pensamos logo em estrelas. A lembrança da escola é acompanhada da imagem de alguns colegas.
II – Lei da contiguidade temporal: duas ou mais idéias se associam porque correspondem a fatos e estímulos recebidos no mesmo momento. Por exemplo, raio com trovão.
III – Lei da semelhança externa: duas ou mais idéias se associam porque correspondem a fatos ou estímulos que se parecem. Uma baleia nos faz pensar num golfinho. Na antiga mesopotânea tentava-se curar a icterícia de um enfermo atando ao leito do mesmo um galo de cor amarela para que atraísse sobre si o amarelo do doente.
IV – Lei da semelhança interna: duas ou mais idéias se associam porque correspondem a fatos ou estímulos recebidos que tem para o indivíduo o mesmo valor intrínseco ou despertam o mesmo sentimento. Lobo e onça, ambos despertam medo, ambos são agrupados em nosso cérebro como animais selvagens perigosos.
Associando por contiguidade e por semelhança vamos agrupando algumas representações, separando outras, vamos organizando-as em nossa mente, vamos pensando.
O conteúdo do pensamento primitivo se restringia aos elementos presentes captados pelos sentidos naquele momento (aqui e agora): a fruta que estava no galho a sua frente, o cheiro de carniça, etc. Ou seja, o pensamento era exclusivamente concreto.
Porém, as associações gradativamente vão sendo incorporadas à memória e a elas se recorre mais adiante. Ou seja, aos poucos, do pensamento exclusivamente concreto na base do aqui e agora, se desprende o pensamento abstrato. Esta forma de pensar vai além do que está sendo captado naquele momento pelos órgãos dos sentidos, opera incorporando elementos não presentes no campo da percepção. Volta no tempo, associa com representações armazenadas na memória vividas em tempos passados, surgindo no processo de pensar a dimensão temporal.
Através do pensamento abstrato é possível nos desvincularmos totalmente dos elementos que estão sendo captados naquele momento. É como se viajássemos para outros espaços e outros tempos.
PENSANDO O QUE PENSAR
PENSANDO O PENSAR
Os filósofos se perguntaram: “Se com nosso pensar espontâneo já conseguimos conhecer bastante a realidade que nos cerca, organizando, disciplinando nossa forma de pensar não obteremos muito mais conhecimento?” Ou seja, deveríamos desenvolver um método (meta = através de; odos = caminho; portanto, método = caminho através do qual se chega a um objetivo). E os seres humanos passaram a pensar a forma de pensar.
Francis Bacon (1561-1626) foi um dos primeiros a perceber que o conhecimento adquirido através de um método apropriado poderia dar ao homem prosperidade. 
“Compilaremos os fatos com o cuidado de não impor nossas idéias sobre eles, mas deixá-lo-emos falarem por si mesmos. Observando os fatos colhidos encontraremos relações entre eles que nos levarão a formulação de hipóteses. Testaremos as hipóteses experimentando-as. Se os testes confirmarem as hipóteses, teremos descoberto um novo conhecimento preciso, uma lei natural”.
“Compilaremos os fatos com o cuidado de não impor nossas idéias sobre eles, mas deixá-lo-emos falarem por si mesmos. Observando os fatos colhidos encontraremos relações entre eles que nos levarão a formulação de hipóteses. Testaremos as hipóteses experimentando-as. Se os testes confirmarem as hipóteses, teremos descoberto um novo conhecimento preciso, uma lei natural”.PENSAR COM A RAZÃO
PENSAR COM A RAZÃO
René Descartes (1596-1650) teve influência ainda maior do que Bacon no desenvolvimento do método de pensar científico: “Sabemos - disse ele espertamente para evitar a inquisição da Igreja Católica - que o mundo foi criado segundo o Gênese, mas é interessante ver-se de que maneira poderia ter-se desenvolvido naturalmente”.
Propunha-se a criar um método novo, científico, do estudo do conhecimento que substituísse a fé cega. “Surpreendi-me com o grande número de falsidades que aceitara como verdades em minha infância”. Com certeza não foi só ele a se surpreender.Para Descartes: “Os sentidos podem nos induzir ao erro”. Fato que todos experimentamos, por exemplo, ao “ver” o sol “girar” em torno da terra. A propósito, um antigo provérbio árabe diz: “Não declares que as estrelas estão mortas só porque o céu está nublado”.
Para Descartes só alcançamos a verdade pelo pensamento racional, organizado, exercido com método. Torna-se assim, o pai do racionalismo.
PENSAR COM ROTEIRO
PENSAR COM ROTEIRO
A partir de Descartes, o pensar racional, científico procura organizar-se. Roteiros são propostos:
Definição: consiste em colocar em palavras a essência de uma coisa (ser, objeto, idéia). É um recurso de expressão que utilizamos para transmitir o que é que queremos dar a entender quando empregamos uma palavra ou nos referimos a um objeto ou ser. A todo instante estamos nos colocando frente a definições: “O que é isso?” “O que é aquilo?” “O que você quis realmente me dizer?” Ou seja, estamos constantemente definindo. Lembremos Platão: “A palavra precisa concordar com o fato”.
Classificação: consiste em distribuir os seres, as coisas, os objetos, os fatos ou fenômenos em acordo com suas semelhanças e diferenças.
Análise: é a decomposição de um todo em suas partes. Como quase tudo é muito complexo, para se entender algo é necessário discriminar, dividir, isolar as dificuldades para resolvê-las. A análise procura a diferença.
Síntese: é a reconstituição do todo decomposto pela análise. Busca uma visão do conjunto e apoia-se nas semelhanças entre os seres, fatos, fenômenos e idéias. Análise e síntese são processos inversos e complementares e estão na base de todos os métodos científicos.
Indução: processo que vai do particular para o geral, do conhecido para o desconhecido, dos fatos para as leis, do efeito para as causas. De várias verdades particulares chega-se a uma verdade geral ou lei científica. De uma amostragem válida estende-se o resultado a toda uma população. Por exemplo: uma empresa vai lucrar mais patrocinando o time de futebol do Corínthinas ou o do Internacional? A empresa prefere vender mais para os paulistas ou para os gaúchos? Qual o clube tem maior torcida? Qual das torcidas tem maior poder aquisitivo? Qual das torcidas se interessaria mais pelos produtos da empresa? Qual clube aparece mais na mídia? Enfim, o processo vai da observação de fatos particulares até chegar a verdade geral.
Dedução: o processo mais comum que vai da generalização para a especificação. Por exemplo: “Todo o brasileiro entende de futebol. Jorge Alberto é brasileiro. Jorge Alberto entende de futebol”. Estamos tão habituados à dedução que muitas vezes pulamos a argumentação e vamos direto a conclusão. Cito como exemplo a pessoa que vai ser entrevistada tendo em vista obter um emprego. Minutos antes, sente-se um pouco tonta. Imediatamente vai a lancheria próxima e toma um refrigerante. É possível que nem tenha tido consciência do processo que fez. Se perguntado, talvez responda que sentiu vontade de tomar um refrigerante. Seu raciocínio, em verdade, foi complexo e essencialmente dedutivo: “Sinto-me um pouco tonto. Uma vez experimentei sensação parecida e conclui estar com hipoglicemia. Devo estar com hipoglicemia de novo. Quem está com hipoglicemia deve ingerir açúcar. Tenho poucos minutos para entrevista. Um refrigerante é algo com açúcar que posso encontrar e beber rapidamente”.
No processo de descoberta de uma lei natural, dirigimo-nos do particular para o geral: indução. Obtida a lei, ao aplicá-la, dirigimo-nos do geral para o particular: dedução.
Por exemplo, L. Auembruggerr (1722-1809) publicou um livro ao qual deu o nome de “Inventum Novum”. O invento que descreve é o método de percussão direta do tórax. Observara na infância seu pai batendo nas barricas de vinho para concluir pelo som mais abafado o nível de vinho contido. Por indução concluiu que sempre que houver líquido num recipiente fechado o som da percussão será mais abafado do que onde houver ar (do particular para o geral). Por dedução concluiu que o mesmo se passaria com coleções de líquido na cavidade toráxica de seus pacientes (do geral para o particular). Transpôs assim para o exame do doente o método usado por seu pai com as barricas. J.N. Corvisart (1755-1821) teve conhecimento desta ainda obscura obra e divulgou-a em Paris e o método de percussão se mostrou espetacularmente fecundo em mãos dos clínicos franceses.
RACIONALISTAS E EMPIRISTAS
RACIONALISTAS E EMPIRISTAS
Por muito tempo, os filósofos se agruparam em racionalistas 
como Descartes e em empiristas como John Locke (1632-1704). Enquanto os racionalistas davam pouco valor a experiência dos sentidos como fonte de conhecimento, sustentando que o único conhecimento confiável provém do uso da razão, os empiristas insistiam no contrário: para eles, a informação sobre o mundo exterior nos chega apenas por meio dos sentidos. Só a partir daí, a nossa mente começa a definir, classificar, analisar, sintetizar, induzir e deduzir.
como Descartes e em empiristas como John Locke (1632-1704). Enquanto os racionalistas davam pouco valor a experiência dos sentidos como fonte de conhecimento, sustentando que o único conhecimento confiável provém do uso da razão, os empiristas insistiam no contrário: para eles, a informação sobre o mundo exterior nos chega apenas por meio dos sentidos. Só a partir daí, a nossa mente começa a definir, classificar, analisar, sintetizar, induzir e deduzir.
Foi Immanuel Kant (1724-1804) quem superou as divergências e reuniu racionalismo e empirismo ao demonstrar que ambos são complementares.
A ciência, portanto, é um conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determinado objeto ou fenômeno captados a partir da observação e da experiência (empirismo) e compreendidos pelo pensar racional (racionalismo). Tais conhecimentos podem ser desvendados novamente desde que se repita a pesquisa. Ou seja, o conhecimento para ser científico deve estar sempre aberto a ser testado.ANTI-PODER
ANTI-PODER
A experiêcia de Lazare Spallanzani (1729-1799), por exemplo, pode ser repetida e testada por nós agora mesmo. Professor de História Natural na Universidade de Pávia, descobriu através de uma pesquisa muito, mas muito simples mesmo os princípios essenciais da reprodução e sepultou a teoria da "geração espontânea" até então concepção dominante.
Spallanzani era arrojado. Dedicando-se inicialmente à fisiologia, engolia grande número de alimentos diversos, envolvidos em pequenos sacos de tela, amarrados por um longo fio. Depois de horas, retirava-os de seu estômago e observava o que acontecera a eles. Demonstrou que as carnes são desmanchadas no estômago, os legumes permanecem intactos...
Cem anos antes de Pasteur, Spallanzani provou que a geração espontânea não existe e que todos os seres vivos provêm de outro ser vivo preexistente.
Sabia-se que durante o acasalamento das rãs, a fêmea punha ovos aglutinados no meio de uma matéria viscosa. Spallanzani observou que o macho regava esses ovos com um líquido esbranquiçado à medida que saía da cloaca da fêmea. Supôs que havia uma fecundação externa. Mas, o pensamento da época dizia que os seres surgiam espontaneamente, em qualquer lugar, obra dos deuses.
Spallanzani colocou cueca nos machos e o pensamento médico (e humano) evoluiu. Nos aquários em que os machos tinham cuecas, ninguém era gerado. Nos aquários de machos sem cuecas, surgiam e cresciam novas rãs. Rãs de cuecas liquidaram a "geração espontânea".
NULLIS IN VERBA
NULLIS IN VERBA
Formular hipóteses e desconfiar delas, testá-las... abandoná-las. A ciência é o anti-poder porque ela mesma se combate. A ciência nunca crê e sempre desconfia.
Entrando no campo da moral no sentido do uso que se faz do conhecimento, é bom começar com a crítica das teorias totalizantes que explicam tudo e com a crítica da verdade verdadeira. Os déspotas de todo o tipo, grandes ou pequenos – religiosos, políticos, professores, pseudocientistas – alicerçam seus poderes em cima dessas noções.
David Hume (1711-1776), filósofo inglês, preocupava-se com 
as teorias que explicam tudo. “À parte a matemática, não conhecemos nada com certeza” - afirmava. O fato de uma teoria se propor a explicar tudo é prova de que não passa de uma crença: “Se não podemos ter certeza absoluta de nada, como poderemos acreditar ter resposta para tudo?”
as teorias que explicam tudo. “À parte a matemática, não conhecemos nada com certeza” - afirmava. O fato de uma teoria se propor a explicar tudo é prova de que não passa de uma crença: “Se não podemos ter certeza absoluta de nada, como poderemos acreditar ter resposta para tudo?”John Dewey (1856 – 1952), por sua vez, alerta para o perigo da verdade verdadeira, estática, perfeita, final, eterna. Para Dewey a verdade deve ser vista em acordo com a evolução do ser humano. Os homens gradualmente sabem mais, mas cada fragmento de conhecimento uma vez conseguido de forma alguma é o final: “A verdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão”. Nullis in verba: a palavra de nenhum homem será a final (as mulheres concordam totalmente).
Com o seguimento da evolução, o ser humano consegue ampliar a capacidade de captar e compreender. O fenômeno, com os novos recursos disponíveis, será captado e compreendido de outra forma. Neste outro nível de evolução, a verdade já é outra verdade. A verdade verdadeira, se é que ela existe, provavelmente nós seres humanos nunca a alcançaremos. Um exemplo bem simples: há bem pouco construíram binóculos que permitem enxergar na escuridão.
Conclusão: a verdade não é mais aquela que dizia não haver grandes movimentos entre os animais na floresta à noite. Ao contrário, há muita “vida noturna” nas florestas.
As “verdades” científicas, portanto, vão sendo superadas por outras “verdades”. Na medicina os exemplos são inúmeros. Cito dois: a malarioterapia e a fornoterapia.
MALARIOTERAPIA
MALARIOTERAPIA
Julius von Wagner-Jauregg (1857-1940) introduziu a terapia 
da frebe provocada pela malária no tratamento de pacientes psicóticos devido a sífilis cerebral.
da frebe provocada pela malária no tratamento de pacientes psicóticos devido a sífilis cerebral.Em 1927, ao receber o Premio Nobel de Medicina, Wagner-Jauregg disse: “Para uma pessoa ficar famosa, não basta ser hábil. Precisa também ter sorte. Certo dia, em 1887, eu caminhava por uma estrada levando uma bolsa. Fiquei cançado e resolvi abandonar a velha bolsa. Deixei-a lá na estrada e prossegui. Exatamente trinta anos depois, aconteceu-me passar ao longo da mesma estrada e lá, onde a havia abandonado, estava a velha bolsa. Já tão estragada eu a deixara que ninguém se incomodara em apanhá-la. Assim, eu mesmo a retomei e, quando a abri, vi que continha um grande tesouro”.
A bolsa representa a concepção de que a febre fazia os psicóticos (pacientes que perdem o juízo da realidade) voltarem a normalidade pelo menos temporariamente.
Jovem e curioso lia textos antigos sobre medicina. Hipócrates falara sobre certos epiléticos psicóticos que apanharam malária e ao melhorarem estavam também melhores de sua loucura. Na Idade Média, certo número de médicos notaram que depois de uma febre, alguns doentes recuperaram a saúde mental. Uma epidemia de cólera num hospício da França exterminou centenas de internados mas deixou os sobreviventes sãos.
Wagner-Jauregg, assim que pode, experimentou fazer a mesma coisa. Tentava imitar a natureza: produzir artificialmente a espécie benéfica de febre com que ela muitas vezes destruira a loucura. Experimentou a febre tifóide e a tuberculose.
Além de não obter grandes resultados, não havia como recuperar o paciente destas doenças. Acabou desistindo de experimentar mas nunca da idéia. Deixou a bolsa de lado.
Foi no dia 14 de junho de 1917 que o médico vienense, único psiquiatra a ganhar um Nobel, encontrou a sua bolsa. Baixa em sua enfermaria um soldado, vindo da linha de frente da Primeira Guerra, com Malária. Pois bem, na época já se tinha um certo controle sobre a doença.
Wagner-Jauregg já havia definido que trataria apenas a psicose oriunda da sífilis cerebral. Passou ele a retirar o sangue do paciente contaminado com malário e aplicar nos psicóticos escolhidos. Após crises de febre, o paciente voltava a realidade. Nos dez anos seguintes, continuou as experiências.
Pela primeira vez na história da humanidade alguma técnica dava resultados palpáveis no tratamento de um tipo de loucura! Ninguém duvida, no momento foi um grande avanço, uma verdade científica.
A malarioterapia foi introduzida nos Estados Unidos por William White, médico do Hospital St. Elizabeth de Washington, onde foi largamente aplicada.
FORNOTERAPIA
FORNOTERAPIA
Lá mesmo nos Estados Unidos inventaram uma forma de produzir febre sem infeccionar o paciente: um forno.
Nos anos quarenta, Willis Whitney, engenheiro elétrico da 
General Electric Company, observou que os funcionários que faziam funcionar um poderoso transmissor de rádio de ondas curtas, capaz de irradiar um concerto sinfônico ou a propaganda de um produto qualquer para todo o planeta, viviam como se estivessem a pique de adoecer. Desconfiado, ele os examinou com termômetro e verificou que os mesmos, sempre que permaneciam horas junto ao transformador, apresentavam febre.
General Electric Company, observou que os funcionários que faziam funcionar um poderoso transmissor de rádio de ondas curtas, capaz de irradiar um concerto sinfônico ou a propaganda de um produto qualquer para todo o planeta, viviam como se estivessem a pique de adoecer. Desconfiado, ele os examinou com termômetro e verificou que os mesmos, sempre que permaneciam horas junto ao transformador, apresentavam febre.
A partir daí transformou-se em fisiologista amador. Concebeu uma pequena máquina para aquecer e produzir febre em coelhos. Depois, introduziu sífilis nos seus coelhos e extinguiu-a com sua febre mecânica. Entrou, então, em contato com os médicos do Instituto Psiquiátrico do Centro Médico de Nova Iorque.
Logo, uma máquina enorme, suficiente para um homem, foi construída: uma cama com uma tampa corrediça e curva através da qual um médico podia observar o doente e evitar que ele se assasse.
As primeiras experiências com a máquina foram bem sucedidas, a febre artificial era boa e tão eficaz quanto a provocada pela malária para tratar os doentes com sífilis cerebral. Sua prática não se estendeu mais devido ao custo elevado do aparelho. E, depois, outro tratamento mais eficaz surgiu para a psicose produzida pela sífilis cerebral. Uma nova “verdade” desbancou a febre terapêutica.
Wagner-Jauregg mereceu o Nobel. Em sua época, muitas pessoas se beneficiaram com a malárioterapia, o único procedimento que dava algum resultado.
A MENINA DA FOTOGRAFIA
A MENINA DA FOTOGRAFIA
Voltemos a David Hume para mais um alerta: “A razão é escrava da paixão”. O ser humano se submete a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
A propósito do último pé do tripé – o apaixonamento - lembro-me de uma visita ao Kremlim, em Moscou, na época de Gorbaschov. Iuri, filho de um general, tradutor para o russo tanto do português quanto do italiano, conta-me de Enguelsina Markizova. Sua história me parece um exemplo maiúsculo de tudo o que acabamos de dissertar.
Iuri orienta-me onde conseguir mais informações sobre a Enguelsina, “a menina da fotografia”. Aos sete anos, morava ela com a mãe, estudante de medicina em Moscou. O pai, segundo secretário do Comitê Regional do Partido Comunista da República Socialista Soviética Autônoma dos Buriates-Mongóis, aproveitava as reuniões políticas em Moscou para passar alguns dias com elas.
Numa das reuniões, Enguelsina acompanhou o pai ao Kremlin, levando junto dois ramos de flores comprados pela mãe: se fosse possível, era para ela entregar a Stalin. Conta Enguelsina: “Aborreci-me de escutar os discursos e resolvi ir entregar as flores. Porém, detiveram-me. Um homem me inquiriu e falou de mim a Stalin que me deixou se aproximar, me ergueu e me colocou sobre a mesa da presidência:
- A menina quer discursar – disse ele à platéia.
E eu falei:
- São flores das crianças de nossa república.
A sala aplaudiu. Tiraram muitas fotos”.
A partir daquele dia Enguelsina foi transformada no símbolo da infância feliz das crianças soviéticas. Nos anos trinta, não havia escola sem a foto daquela menina sorridente de sete anos no colo de Stalin. Ela olhava aquelas fotos e sentia uma inegável paixão por aquele homem tão importante que se dignara a lhe dar tamanha atenção.
Em dezembro de 1937, à noite, prenderam o pai de Enguelsina com a acusação inventada de espionagem a favor dos serviços secretos japoneses e de preparação de um atentado contra a vida de Stalin.
Enguelsina escreveu uma carta a Stalin, seu grande e apaixonante ídolo, pedindo que corrigisse tamanha injustiça, lembrando que ela era a menina da fotografia. Em resposta, prenderam sua mãe. Após nove meses de prisão foi deportada junto com os filhos para o Cazaquistão. Enguelsina até teve sorte, não foi separada de sua mãe e colocada num orfanato como habitualmente procediam com os filhos dos “inimigos do povo”.
Os anos passaram e a “menina da fotografia” conta que nunca relacionou sua orfandade, assim como a tragédia de tantas outras famílias com o nome de Stalin. Ele continuava sendo seu grande ídolo: “Eu estava perto do alto-falante que anunciou a morte de Stalin e, com a minha filha de oito meses ao colo, chorei amargamente”.
Ainda triste pela perda daquele “grande homem”, em 1956, Enguelsina, com idade próxima aos trinta anos, é colocada frente ao conhecimento real: Stalin sancionara a ordem para o fuzilamento de seu pai. A carta recebida em 1937 dizia: “Condenado a dez anos de prisão sem direito a correspondência”. Na verdade, esta formulação significava que na realidade a pessoa tinha sido fuzilada.
Enguelsina chorou a morte de um ídolo, de uma figura imaginada, não do homem real chamado Stalin. A ironia, a dor, a perplexidade de saber que derramara lágrimas sinceras ao ouvir daquele alto-falante que morrera o camarada Stalin... com a filha de oito meses no colo... Como pode negar por tanto tempo as evidências que apontavam Stalin como o culpado de sua tragédia pessoal?! Enguelsina, infelizmente, a razão é escrava da paixão.
SANTO MAO
SANTO MAO
Quando adolescente, algumas vezes escutava a Rádio Pequim. Lembro o quanto o locutor vociferava contra a camarilha 
revisionista. Mao era incontestável, qualquer crítica era um desvio burguês, uma atitude contra a “ciência” social, econômica e histórica aplicada por ele naquele imenso país.
revisionista. Mao era incontestável, qualquer crítica era um desvio burguês, uma atitude contra a “ciência” social, econômica e histórica aplicada por ele naquele imenso país.
Depois, quando visitei a praça da Paz Celestial e vi o corpo embalsamado de Mao em meio a um cortejo respeitoso e ininterrupto de chineses, conclui estar, em verdade, diante de uma figura religiosa. Aliás, o guia confirmou: Mao, para ele, era um santo. Naquele momento de sua vida, disse-me haver adquirido uma crítica desta visão: “Mas só a nível de razão. Pois no meu sentir ele ainda é um santo”.
REVOLUÇÃO CULTURAL
REVOLUÇÃO CULTURAL
A visita a China me fez lembrar de Hua Linshan, um dos milhares de atores dos acontecimentos que marcaram a China na década de sessenta, na chamada Revolução Cultural.
Mão buscava apoio entre os jovens para expurgar do Partido 
Comunista seus opositores através do expediente de lançar slogans contra as falhas do próprio partido. Palavras de ordem como: “luta contra a classe privilegiada”, “contra a repressão”, “pela grande democracia”. Ou seja, parecia estar propondo uma nova revolução na China. Em verdade, viu-se depois, tratava-se apenas de uma estratégia para se manter no poder.
Comunista seus opositores através do expediente de lançar slogans contra as falhas do próprio partido. Palavras de ordem como: “luta contra a classe privilegiada”, “contra a repressão”, “pela grande democracia”. Ou seja, parecia estar propondo uma nova revolução na China. Em verdade, viu-se depois, tratava-se apenas de uma estratégia para se manter no poder.Mas Hua, adolescente de dezesseis anos, com toda a dedicação e honestidade que um ser humano pode ter, entrega-se de corpo e alma ao novo movimento proposto por Mao rumo a um “novo patamar” comunista.
Mao não era claro, apenas liberava insinuações contra este ou aquele na imprensa oficial. No jornal do Partido, apareciam artigos tipo “A corja negra antipartido”. Textos vagos e imprecisos.
Hua passa os próximos dois anos correndo confuso e perdido, como os demais adolescentes seus companheiros, querendo a todo o custo fazer algo que fosse considerado realmente revolucionário. Ansioso, procurava nas entrelinhas do jornal qual a tática que empregada o caracterizaria como um verdadeiro Guarda Vermelho.
É de sensibilizar a tristeza de Hua e de seus amigos adolescentes ao perceberem com atraso uma tática revolucionária. Atraso de uma semana frente a outros grupos de adolescentes: deveriam acabar com os velhos costumes, a velha cultura, os velhos hábitos e as velhas idéias.
Outros já haviam se adiantado: mudaram o nome das ruas, realizaram batidas nas casas das famílias que tinham dinheiro antes de 1949, ano da vitória do comunismo na China, para destruir algum objeto de valor encontrado, confiscaram os livros das famílias de intelectuais.
Hua e seu grupo foram a um campo próximo a cidade onde haviam estátuas de Buda: já haviam sido destruídas. Desenterram os túmulos dos camponeses que foram ricos antes de 1949: nada acharam de valor. Hua chorou, não consegui dar uma dentro e se tornar de fato um revolucionário. Acabou tendo de fugir a nado para Hong Kong: não conseguira se fazer aos olhos dos vitoriosos um Guarda Vermelho e acabara caçado por eles.
Hua Linshan introjetara desde os primórdios de sua existência que a vida só tinha sentido se ligada à revolução. Não sabia bem o que era a revolução. Mas, sem dúvida, era apaixonado por ela.
PSEUDOCIÊNCIA
PSEUDOCIÊNCIA
Outro perigo nos aflige. Para adquirir credibilidade vou propagandear que meu conhecimento é científico sem sê-lo: a pseudociência.
Um exemplo terrível de pseudociência ocorreu na Inglaterra e em outros países no final do século XIX e início do século XX. A proibição do prazer sexual pela Igreja impregna certos médicos que passam a praticar a prevenção da masturbação tida como causadora de inúmeras doenças como epilepsia, hipertrofia do coração, gagueira e inúmeros transtornos mentais.
De dia era fácil orientar os pais a vigiarem os meninos, mas e a noite? Passaram, então, a vender anéis com pontas em seu interior para serem colocados no pênis dos meninos. Quando em ereção, o pênis preenchia o anel e era atingido pelas pontas. Devido a dor, desfazia-se a ereção. Um aparelho não doloroso foi desenvolvido: quando ocorria a ereção noturna, um dispositivo ligado ao anel colocado no pênis acionava uma campainha acordando os pais.
FREUD HOJE SERIA FREUDIANO?
FREUD HOJE SERIA FREUDIANO?
Ao falar em sexualidade infantil necessariamente nos vem um nome a cabeça: Sigmund Freud. Provavelmente tenha sido ele quem mais contribuiu para que a humanidade percebesse a normalidade das manifestações sexuais nas crianças.
Homem sério, de vida simples, trabalhou na maior parte do tempo de forma solitária em consultório que mantinha na residência em que estava a morar.
Quando residia nos arredores de Berchtesgaden, numa casa junto a muitos pinheiros, fazia-lhe companhia no consultório uma cadela de nome Wolf. A vida simples de um gênio.
A técnica psicoterápica desenvolvida por Freud nunca foi testada e comprovada cientificamente. Até porque nas ciências mentais provas comparáveis a provas físicas não são obteníveis, não se conseguem demonstrações matemáticas. Porém, as opiniões emitidas por Freud, mesmo sem serem testadas e comprovadas, foram tomadas por muitos de seus seguidores como verdades “científicas”. Autodenominaram-se Freudianos.
A geração seguinte, aluna dos alunos de Freud, tomou o nome do professor e acrescentou iano: Adleriano, Kleiniano, Lacaniano, Rogeriano, ad infinitum. Freud na prática foi tomado como profeta.
Na minha formação, por exemplo, muitas discussões encerravam-se quando alguém muito versado nas obras do vienense citava alguma passagem. Se Freud disse, assunto encerrado.
Freud nunca quis ser um profeta. Há indícios de que possuía forte espírito científico. Inclusive, tinha a visão clara de que suas descobertas seriam suplantadas. Chegou a citar que muitas doenças que atendia psicoterapicamente seriam, no futuro, tratadas pelo uso de medicamentos, numa acertada antevisão do que viria a acontecer.
Infelizmente, para muitos dos seus seguidores, as obras completas de Freud se tornaram uma bíblia. Para eles, a terapia psicanalítica passou a ser uma técnica de indicação universal. Todas as pessoas deveriam se submeter a ela. Para qualquer pessoa vista caminhando na rua haveria indicação de tratamento psicanalítico. É claro que a maioria dos psicanalistas de hoje não concorda com tal distorção e procura métodos para avaliar a sua técnica.
A propósito, as pesquisas sobre a eficácia das psicoterapias tem revelado fatos curiosos. Um deles: a técnica empregada é, muitas vezes, menos importante como fator curativo do que qualidades como inteligência, empatia e experiência de vida do terapeuta que a aplica.
Portanto, cuidado! Mesmo entre aqueles que fazem sua formação numa universidade, o perigo de crer e de transformar seus professores em profetas e de se submeter a eles é grande.
OBEDIÊNCIA
OBEDIÊNCIA
Afinal, por que a humanidade tem tanta facilidade em crer e em se submeter?
Stanley Milgran percebeu de forma dramática este “defeito” 
do ser humano em pesquisa que realizou na Universidade de Yale com voluntários norte-americanos sobre a obediência à autoridade.
do ser humano em pesquisa que realizou na Universidade de Yale com voluntários norte-americanos sobre a obediência à autoridade.
O foco da pesquisa recaiu sobre cidadãos comuns que aceitaram colaborar voluntariamente. Eles, entretanto, não sabiam do que se tratava. Chegavam ao laboratório para participar aparentemente de um estudo sobre memória e aprendizado. Porém, entre eles, haviam atores contratados disfarçados de voluntários. Os atores eram escolhidos, aparentemente ao acaso, para o papel de “aluno” e os voluntários designados para a função de “professor”.
A cada erro, o “aluno” recebia uma descarga elétrica gradativamente maior mediante um sistema de botões acionado pelo “professor”. Pude ver o aparelho falso emissor de choque de Milgram numa visita que realizei há alguns anos ao Museu de Psicologia da Universidade de Akron, Ohio.
O voluntário não sabia que o choque era simulado. Acreditava que os gritos e protestos do ator no papel de “aluno” eram sinceros. Toda a vez que o “professor” hesitava em apertar o botão, o responsável pela pesquisa mandava-o continuar.
Milgran confessou que os resultados lhe foram perturbadores. Não planejara que os “choques” teriam de ser “mortais” para conseguir a desobediência à autoridade da pesquisa. A vítima dizia sofrer do coração, implorava para que a deixassem ir. Os voluntários olhavam para a autoridade da pesquisa que com um sinal de cabeça, como um tirano, dizia continue a apertar o botão. E eles continuavam a apertar o botão.
Porque tamanha submissão à tirania da autoridade da pesquisa? Lembremos da independência interior de Epicuro: “Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em sua mente, ocupará seus pensamentos e sentimentos se você deixar”.
Os psiquiatras norte-americanos David Halperin e Marc Galanter ganharam proeminência no trabalho de desprogramar pessoas pegas por cultos religiosos coercivos, em geral, na época da adolescência ou de adultos jovens. Um trabalho difícil em todos os sentidos, abundam processos das seitas contra os familiares que solicitam o trabalho dos psiquiatras.
Não somos educados no espírito científico. Ou seja, recolhemos os ensinamentos paternos e escolares desde cedo na vida como verdades. Não desenvolvemos o hábito de “desconfiar” e sim o de “crer”.
Porém, há sempre no próprio ser humano uma fagulha de desconfiança. Quem crê, felizmente, no fundo, também desconfia. Lembram-se da irritação do pregador? “Irmãos, viemos rezar por chuva. Onde estão vossos guarda-chuvas?”
A ÉTICA DO CRENTE
A ÉTICA DO CRENTE
Clifford em “A ética do crente” (1874), trouxe uma interessante questão.
Um construtor estava por colocar no mar um navio de emigrantes. Dúvidas relativas as condições da embarcação lhe angustiavam. Havia pressa em despachar aquelas famílias, outras já esperavam sua vez. Vistoriar a embarcação levaria muitos dias. Na igreja, rezando, chegou a conclusão de que seu Deus não permitiria que o pior ocorresse com aquelas famílias. E ele realmente acreditava na sua fé. De tal forma que quando o naviou zarpou ele dormiu em paz, com a consciência tranqüila. Porém, o navio afundou.
Como julgar o construtor?
Fora ele culpado da morte daquelas pessoas? Era honesta a crença que depositava em seu deus. Assim crendo, não havia necessidade de testar o material de seu navio.
Se nós o considerarmos culpado, não estaremos afirmando que o único método de conhecimento que deve ser aceito é o científico? Aquele que nos faz duvidar e testar? Não estaremos assim condenando não só os que manipulam o conhecimento mas também aqueles que honestamente crêem?
As universidades, as escolas e as famílias não deveriam seguir a receita dos filósofos criadores do pensamento científico e ensinar a sempre duvidar? A cada conteúdo ensinado, na seqüência não se deveria estimular a crítica, levantar as falhas? A especular sobre qual será a verdade futura, deixando evidente que se há verdade no que acabaram de aprender ela será superada por outra verdade que por sua vez também será superada?
A UTILIDADE DA FANTASIA
A UTILIDADE DA FANTASIA
O conhecimento preciso, real é sempre melhor do que o falso, o imaginário, o fantasioso? Um escravo negro na América sonha acordado: está de volta à África e quase crê no seu sonho. Ele deve ser acordado? Os grilhões e todo um oceano o separam de sua agradável fantasia? A Àfrica livre... só poderá tê-la em seu sonho. Mesmo assim, o conhecimento real é o melhor para ele?
A resposta dos filósofos, com certeza, seria: o direito de optar entre a fantasia e o conhecimento real é só dele e demais ninguém. Vamos “acordá-lo”. Se quiser, ele voltará a “dormir”. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
O SABER HUMILHA
O SABER HUMILHA
O conhecimento real provoca algumas rasteiras na nossa vaidade. Com Copérnico (1543), o homem leva o primeiro 
golpe em seu narcisismo ao ver que o planeta que habita não é o centro do universo. Sofre o segundo com Darwin (1859), ao reconhecer-se membro da escala animal. Com Freud e todos os que contribuíram ao conhecimento do funcionamento da mente humana, sofre o terceiro ao perceber não ser senhor absoluto nem de suas próprias emoções, ações e pensamentos.
golpe em seu narcisismo ao ver que o planeta que habita não é o centro do universo. Sofre o segundo com Darwin (1859), ao reconhecer-se membro da escala animal. Com Freud e todos os que contribuíram ao conhecimento do funcionamento da mente humana, sofre o terceiro ao perceber não ser senhor absoluto nem de suas próprias emoções, ações e pensamentos.
Porém, lembremos que há muito, muito tempo mesmo, um chinês de Lu já filosofara a respeito: “Quando não sabes algo, o reconhecimento de que não o sabes é saber”.
LIÇÕES
LIÇÕES
1. Observação, observação e mais observação.
2. Os sentidos podem nos induzir ao erro.
3. A verdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão.
4. Cuidado! O ser humano tende a se submeter a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
5. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
6. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
7. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
8. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
9. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
10. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
11. Não concordar cegamente com seu “professor”.
12. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
13. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
14. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
15. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
16. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
17. A palavra precisa concordar com o fato.
18. Tudo está se tornando nada é.
UTILITARISMO
UTILITARISMO
Há coisas demais para nossa curta vida. Como selecionar o que é realmente útil?
Certa vez em Nova Iorque, minha esposa e eu conhecemos um casal muito simpático. Ele explicou-me que estava acima de seu peso porque em sua casa todo o prato com sobra de comida era colocado em suas mãos. E ele não sabia selecionar, comia tudo. Problema maior era sua esposa. Uma mulher inteligente e alegre, mas incapaz de se decidir frente a uma compra. Há uma semana visitava diariamente a mesma loja e examinava os mesmos dois vestidos.Nosso novo amigo tentou ir a Washington conosco, mas a esposa não permitiu. Queria-o na frente da loja. Vez ou outra ela o procurava para ouvir uma opinião. Opinião sempre inútil porque ela continuava sem saber selecionar.
Deixando de lado as dúvidas exageradas, nem sempre é fácil optar. Mesmo no que se refere aos conteúdos. Entre tantas boas idéias e boas ações, qual a melhor?
No final do século XVIII um filósofo escocês-irlandês, Francis Hutcheson afirmou: “A melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas”. Concordando com a afirmação, Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo inglês, passou a sustentar que o acerto ou o erro de uma ação devia ser julgado em termos de suas conseqüências. Boas conseqüências eram as que davam prazer, enquanto más conseqüências eram as que causavam dor. Portanto, a ação correta a ser seguida era aquela que maximizasse o prazer ou então minimizasse a dor.
Pretendia Bentham julgar toda a ação por sua utilidade. Daí a denominação de utilitarismo para esta corrente filosófica que manteve sempre grande influência nas instituições de governo e administração na Grã-Bretanha: “O maior bem para o maior número de pessoas”.
Diferente dos Estados Unidos, por exemplo, onde a ênfase recai na defesa dos direitos individuais, com restrições a 
sacrificar o indivíduo ao bem-estar da maioria e com resistência maior as intervenções do governo sobre os cidadãos.
John Stuart Mill (1806-1873) foi o mais brilhante seguidor de Benthan. Para ele, o indivíduo deve estar livre para fazer o que quiser, desde que não cause prejuízo a ninguém mais: “Sua liberdade de balançar o braço termina onde meu nariz começa”.
PRAGMATISMO
PRAGMATISMO
Três filósofos norte-americanos defenderam o ponto de vista de que o que realmente importa é a aplicabilidade prática de um conhecimento. O conhecimento é uma atividade prática. Se não trouxer resultado prático, não é, em verdade, conhecimento. Criaram o que se passou a chamar de filosofia pragmática, em certo sentido uma adaptação da filosofia utilitarista inglesa à cultura norte-americana.
Um deles, Charles Sanders Peirce (1839-1914), afirmava que: “Nada é vital para a ciência; nada pode ser”. Outro, 
William James (1842-1910), publicou um livro chamado de Pragmatismo. Para ele: “Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas”. Ainda na mesma linha de pensamento: “Não podemos rejeitar uma hipótese, se fluem dela conseqüências úteis à vida”.
William James (1842-1910), publicou um livro chamado de Pragmatismo. Para ele: “Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas”. Ainda na mesma linha de pensamento: “Não podemos rejeitar uma hipótese, se fluem dela conseqüências úteis à vida”.
O terceiro foi John Dewey (1856 – 1952), aquele que fez a crítica a noção tradicional de verdade vista no capítulo anterior. O pragmatismo de Dewey chegava ao ponto de julgar válido o truque de considerar algo verdadeiro pelos seus efeitos. Ou seja, quando não tenho como cientificamente saber qual é o conhecimento preciso, verdadeiro, vou considerar verdadeiro aquela hipótese que mais benefícios acarrete.
Por exemplo, os adivinhos não têm como saber se o sonho do Sultão no qual ele perde todos os dentes significa algo ou não. O primeiro interpreta que cada dente perdido significa a morte de um parente do Sultão que, indignado, manda açoitá-lo. O outro adivinho, adepto ao pragmatismo, dá a seguinte resposta: “Grande felicidade! O sonho significa que havereis de sobreviver a tantos parentes quanto dentes perdeste”. Conclusão, o Sultão fica feliz com tamanha longevidade e ele, adivinho, fica feliz com tantos presentes ganhos. Para Dewey, entre as duas adivinhações, a última, pelos efeitos que trouxe, é a verdadeira.
TUDO TEM A SUA HORA
TUDO TEM A SUA HORA
O pensar pragmático nos alerta que tudo tem a sua hora, nem antes, nem depois.Recordemos os Irmãos Grimm em O Gênio e a garrafa.
O gênio ficou confinado na garrafa durante cem anos e declarou de coração: “Aquele que me libertar, eu o enriquecerei para sempre”. Após duzentos anos, afirmou: “Aquele que me libertar, receberá todos os tesouros ocultos da terra”. Após trezentos anos: “Aquele que me libertar, eu satisfarei três desejos”. E após quatrocentos anos na escuridão fria da garrafa: “Daqui para adiante, aquele que me soltar, eu o matarei!"
PERGUNTA PRAGMÁTICA
PERGUNTA PRAGMÁTICA
Não só em respostas, o pragmatismo é eficaz também em perguntar. Dois monges, fumantes inveterados, decidem consultar seus superiores quanto a questão de fumar durante o período de oração. O primeiro, recebe um xingão. O segundo, um monge pragmático, recebe um gesto de encorajamento. Intrigado, o monge admoestado pergunta a seu companheiro como havia formulado sua questão. Resposta: “Eu perguntei se era permitido orar enquanto fumasse”.
HUMOR PRAGMÁTICO
HUMOR PRAGMÁTICO
A título de ilustração e brincadeira, vamos lembrar algumas citações:
Al Capone: “Podes obter mais com uma palavra amável e um revolver do que com uma palavra amável só”.
Roosevelt: “Um homem que não estudou pode roubar a carga de um vagão. Mas, se tiver instrução universitária, roubará a estrada de ferro inteira”.“Seja você mesmo”, é o pior conselho que se pode dar a certas pessoas.“Um homem não é tão ferido pelo que acontece, como pela sua opinião sobre o que acontece”.
Montaigne. Oração dos índios Sioux: “Pai, ajudai-me a nunca julgar o próximo antes de ter andado sete léguas na suas sandálias”.
E para finalizar: “Se tiveres um encontro marcado, à noite, com uma mulher, preferes ver-me saindo da sua casa ao entrares ou ver-me entrando ao saíres?”
LIÇÕES
LIÇÕES
1. A melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas.
2. Sua liberdade de balançar o braço termina onde meu nariz começa.
3. Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas.
4. Não podemos rejeitar uma hipótese se fluem dela conseqüências úteis à vida.
5. Tudo tem a sua hora, nem antes, nem depois.
6. Um homem não é tão ferido pelo que acontece, como pela sua opinião sobre o que acontece.
7. Oração dos índios Sioux: “Pai, ajudai-me a nunca julgar o próximo antes de ter andado sete léguas na suas sandálias”.
8. Observação, observação e mais observação.
9. Os sentidos podem nos induzir ao erro.
10. A erdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão.
11. Cuidado! O ser humano tende a se submeter a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
12. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
13. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
14. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
15. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
16. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
17. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
18. Não concordar cegamente com seu “professor”.
19. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
20. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
21. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
22. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
23. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
24. A palavra precisa concordar com o fato.
25. Tudo está se tornando nada é.
FALSOS SENTIDOS
FALSOS SENTIDOS
Assim que Salvador Allende se elegeu presidente, fui ao Chile. Janeiro de 1971. Na volta ao Brasil, num bar em Foz do 
Iguaçú, por entre um grupo de jovens viajantes, travo acalorada discussão com um rapaz chileno. Eu, com esperanças no socialismo de Salvador Allende. Ele, indo embora do Chile. A saída era o capitalismo, tinha convicção. Iria pegar carona até o estado do Amazonas. Cruzaria a fronteira e entraria no Texas. Do Amazonas direto para o Texas?!
Iguaçú, por entre um grupo de jovens viajantes, travo acalorada discussão com um rapaz chileno. Eu, com esperanças no socialismo de Salvador Allende. Ele, indo embora do Chile. A saída era o capitalismo, tinha convicção. Iria pegar carona até o estado do Amazonas. Cruzaria a fronteira e entraria no Texas. Do Amazonas direto para o Texas?!
Eu não aceitava que o socialismo era uma falsa saída. Ele não admitia que ao sair do Amazonas não entraria no Texas. Que fim levou meu colega mochileiro?
Times Square. Fevereiro de 1996. Abandonando o cinema com Leaving Las Vegas pela metade, sinto o sol agradável naquele inverno rigoroso. A tarde se vai, e nós também nos vamos: as malas no hotel Mildford e o avião no Aeroporto John Kennedy.
Trânsito lento, muitos pedestres, sábado. Megaedifícios. Neve nas calçadas, em pilhas. Dezesseis graus abaixo de zero, mas com sol. Nem sempre tivemos sol nos dias passados em Manhatan: nuvens nada nos deixaram ver do alto do World Trade Center, de saudosa lembrança.
Nova Iorque dos espetáculos da Broadway, dos estupros no Central Park, do Tram da Island Roosevelt, do vento frio da Quinta Avenida com a 46 St street, do Museu de Arte Moderna com aquelas telas por inteiro brancas de valor milionário. Para onde vai Nova Iorque? Para onde vamos todos?
Ouço, com insistência, de que estamos num labirinto, fragmentados, sem início, sem fim. Estamos como Nicholas Cage em Leaving Las Vegas, sem saída, bêbado até morrer.
Os discursos totalizantes que norteavam a vida de grandes segmentos “pensantes” da humanidade foram destruídos pela realidade prática do cotidiano. O socialismo real fracassou.
O neoliberalismo resolve a vida de alguns, os incluídos no sistema econômico. Um número muito grande de pessoas passará, provavelmente, toda a existência sem conseguir arrumar um emprego sequer.
As eleições “livres” que ocorrem nos países mais ricos, se tornaram uma competição de efeitos de mídia.
As igrejas estão sendo freqüentadas quase que exclusivamente pelos setores menos cultos das sociedades. Aqueles que nelas se ligavam mediante um discurso bem articulado, agora acham-se impossibilitados de fazê-lo. Não podem negar o caráter mundano de suas ações: os muçulmanos radicais se transvestem de bombas humanas e se explodem junto com ônibus coletivos; os católicos e os protestantes do primeiro mundo, na Irlanda, se atacam com explosivos.
Igrejas novas surgem com aberto interesse de lucro.
No pós-moderno não se crê e pouco se respeita a hierarquia. Todos os meios são válidos para o crescimento da “minha causa”: daí o terrorismo como método.
No pós-moderno, a humanidade está sem parâmetros, diz-se: “Estamos sem um sentido para a vida”.
Mas, no bojo disto tudo há algo bom, muito bom: estamos nos livrando de falsidades. De falsos caminhos que de forma articulada e convincente eram apresentados aos jovens e inexperientes como aqueles reunidos no bar em Foz do Iguaçú.
Nossos ídolos eram tão frágeis como blocos de gelo. Bastou um pouco de sol, de luz, de claridade e... derreteram.
Estamos num momento de vazio, é verdade. Um bom vazio, a mente desobumbrada e livre, sem obstáculos ao exercício da criação.
Esperando sinal verde para pedestres em Times Square, Elizabeth Shue as nossas costas, pergunto-me: a geração dos meus filhos, ambos aqui a meu lado mirando a sinaleira, vai criar algum sentido para suas vidas? De alguma forma vai preencher o vazio?
Há que se distinguir sentido na vida com o sentido da vida. O primeiro, refere-se ao destino que dou a minha existência, o segundo, a reflexão que faço se o fenômeno vida tem algum sentido.
Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês, considerava o homem um ser potencialmente livre que vai construindo sua história nos atos de seu cotidiano. Não é livre de determinantes biológicos, da família, da sociedade, da cultura que encontra ao nascer. Mas é livre para lidar com tudo isto, para construir seu projeto, para encontrar um sentido na sua vida.DETERMINISMOS
DETERMINISMOS
Antes de continuar com Sartre, convém primeiro examinar a questão dos determinismos e a questão do livre-arbítrio.
Freud sugeriu uma fórmula para a personalidade humana. P = H (G + IU + p) + VI. H=hereditário; G=genético; IU=intrauterino; p=parto; VI=vivências infantis.
A teoria psicanalitíca de Freud se dedicou a dissecar as vivências infantis, sua influência na formação do ser humano e no sentido que ele dará a sua vida.
A vida intrauterina, pode determinar inclusive a preferência sexual/afetiva hetero ou homossexual do ser humano. O aporte de hormônios no feto influencia na formação de um cérebro masculino ou feminino.
A medicina estuda as conseqüências de um bom ou mau nascimento (parto/cesariana) na saúde geral, inclusive mental, do indivíduo.
Os genes, por sua vez, se constituem em assunto do momento.Segundo sociobiologistas como Edward O. Wilson e outros, herdamos traços neurobiológicos que nos fazem ver o mundo de certa maneira e aprender certos comportamentos de preferência a outros.
Martin Seligman e outros falam em aprendizado preparado ou facilitado: animais e seres humanos estão inatamente preparados para aprender certos comportamentos e predispostos a rejeitar outros.
O medo de cobras entre os primatas serve de exemplo. Certos macacos emitem um alerta anticobra. São competentes herpetologistas instintivos, pois a reação, que parece ser inata, limita-se a cobras venenosas. Outros macacos acorrem ao chamado e, juntos, vigiam a cobra até certificarem-se de seu afastamento.
Os seres humanos também possuem uma aversão inata a cobras que, à semelhança do chimpanzé, aumenta na adolescência. Aprendemos a temer as cobras mais facilmente do que aprendemos a permanecer indiferentes ou até mesmo a se afeiçoar a elas: trata-se de um aprendizado geneticamente facilitado.
A psicologia evolucionista observa o quanto a conduta humana é pressionada por tais determinantes genéticos. A seleção natural é governada pela competição entre os genes para serem representados na geração seguinte.
Nossa espécie viveu mais de noventa por cento de sua existência em condições primitivas. Os homens andavam atrás da caça, copulavam com o maior número de fêmeas que podiam, matavam-se uns aos outros. As mulheres ou estavam grávidas ou com filhos pequenos no colo.
Os homens, quanto mais mulheres engravidassem mais possibilidades teriam de perpetuar seus genes. Às mulheres de nada adiantaria terem muitos machos. Devido aos nove meses de gravidez só poderiam ter um número limitado de filhos. A elas interessavam estratégias úteis à sobrevivência de sua pequena prole. É por isto, dizem os psicólogos evolucionistas, que tendiam a valorizar mais a confiabilidade, a estabilidade e o poder do que a beleza do parceiro.
Nas agências de namoros as mulheres lêem os formulários, enquanto os homens olham as fotos. Nos formulários verão a estabilidade, a confiabilidade e o poder do homem: qualidades necessárias a um companheiro útil à sobrevivência da pequena prole da mulher.
Os homens dão mais valor que as mulheres a juventude e aparência bela: qual melhor garantia de boa saúde e, em conseqüência, de mais fertilidade e de melhores genes?
Clark e Hatfield, psicólogos norte-americanos, contrataram homens e mulheres atraentes para abordarem estranhos do sexo oposto em alguns campus universitários. Forçavam uma aproximação e diziam algo assim: “Tenho notado você aqui no campus. Acho você muito atraente”. Ato contínuo, faziam as seguintes três perguntas: (a) “Gostaria de sair comigo esta noite?” (b) “Gostaria de ir ao meu apartamento esta noite?” (c) “Gostaria de ir para a cama comigo esta noite?”.
Metade das mulheres consentiu em sair à noite. Seis por cento das mulheres consentiu em ir ao apartamento do auxiliar de pesquisa. Setenta e cinco por cento dos homens - contra nenhuma das mulheres - , consentiu em ir para a cama com a auxiliar de pesquisa naquela noite.
Por que ter um caso?
Para as mulheres o outro é, pelo menos na sua fantasia, de algum modo superior/melhor que o marido: mais apto a ajudá-la na sobrevivência da pequena prole. E para os homens, por que ter um caso? Simplesmente porque é uma outra mulher.
Uma mulher ter relações sexuais com outro homem é sempre uma ameaça aos interesses genéticos do homem, pois isso pode lográ-lo, levando-o a trabalhar para os genes de um concorrente. Ao contrário, para a mulher, não necessariamente constitui uma ameaça a seus interesses genéticos. O filho ilegítimo desse homem é problema da outra mulher. Resultado: os homens ficam mais transtornados com a idéia da sua mulher ser sexualmente infiel do que emocionalmente infiel. Quantas vezes já ouvi em meu consultório: “Doutor, ela teve uma paixão por outro cara. Nada demais, não houve sexo”. Já para as mulheres é o contrário: “Ele teve um caso, mais foi só sexo”. Dói nas mulheres é seu companheiro gostar de outra. A estabilidade afetiva para cuidar da prole não pode ser quebrada.
Para os psicólogos evolucionistas, os homens ao se mostrarem poderosos atraem as mulheres, sempre preocupadas em ter um companheiro em condições de auxiliá-la na sobrevivência de sua pequena prole. Primitivos habitantes da costa canadense do Pacífico competem entre si pelo tamanho dos banquetes que oferecem. O anfitrião literalmente despeja sobre os convidados cestos de frutas e pilhas de cobertores. O convidado-concorrente vai embora humilhado e em seu banquete dá as mesmas coisas e, além disso, faz uma grande fogueira e queima uma outra porção de coisas.
A conduta humana está programada pela herança genética, pela vida dentro do útero, pelo momento do nascimento? E as vivências infantis pautadas pela família e pela sociedade? Sobra algum espaço para o livre-pensar, para o livre-decidir? Influímos no sentido que daremos a nossa vida? Ou já está tudo programado?
Afinal, existe o livre-arbítrio? Para Sartre, sim.
LIVRE ARBÍTRIO
LIVRE ARBÍTRIO
Por vezes, advogados defendem que os fatores responsáveis pelo funcionamento da mente determinam por inteiro o comportamento e, portanto, impedem o livre-arbítrio. Sem poder usar seu livre-arbítrio como poderá seu cliente ser condenado: os genes é que o fizeram matar!
As vivências infantis no seio de uma família perturbada são argumentos freqüentemente utilizados. Em 1989, Lyle e Erik Menendez irromperam no quarto de seus pais e os mataram a tiros. Após vários meses ostentando carros luxuosos, cederam as pressões da polícia e confessaram os assassinatos. Seus advogados defenderam-nos alegando legítima defesa, apesar do fato das vítimas estarem deitadas na cama, desarmadas, comendo morango com sorvete. Os garotos Menendez, disseram os advogados, temiam que seus pais fossem matá-los porque o pai abusara deles física, sexual e emocionalmente durante anos.
A sociedade exerce influência importante na formação da personalidade do indivíduo. Mas a que ponto? Em 1994, Colin Ferguson matou seis brancos atirando dentro de um vagão de trem. O advogado, William Kunstler, estava disposto a defendê-lo recorrendo à Síndrome da Ira Negra: um afro-americano pode eventualmente explodir devido à pressão acumulada na vida em uma sociedade racista.
Ainda a questão da influência da sociedade: um prisioneiro condenado à morte em 1992 utilizou como defesa o argumento de que cometeu estupro e assassinato estimulado pela pornografia. A culpa localizava-se na sociedade que lhe permitira ter acesso fácil e livre à pornografia. Se não fosse isso, não teria cometido crime nenhum.
Tais exemplos nos quais o exagero dos determinismos atinge as raias do absurdo, leva-nos a concordar com Sartre. Sofremos pressões genéticas, somos sim influenciados pela família e pela sociedade. Mas somos livres para lidar com isto tudo. Somos livres para decidir o que vamos fazer disto tudo. Somos livres construir um sentido próprio para nossa existência.
Para Sartre, entretanto, o ser humano como regra age de forma semelhante ao advogado de defesa e alega para si mesmo que não é livre. Evita a liberdade tornando-se, por exemplo, uma tarefeiro sem tempo para parar e pensar. Ou convence-se de que não passa de uma vítima daqueles que podem.
Aceitar que somos livres, implica em encararmos nossa responsabilidade por nosso destino e pelo destino do mundo que está aí. É muita coisa!
CONDENADOS À LIBERDADE
CONDENADOS À LIBERDADE
Não adianta negar! Estamos condenados a ser livres! Ninguém poderá traçar por nós o sentido que daremos a nossa vida. As decisões que vamos tomando no cotidiano, as escolhas que vamos fazendo, só nós podemos fazê-las.
Quando entregamos nossa liberdade de decidir e optar a algum “conselheiro”, em verdade estamos optando por falsa saída.
Sartre, como teatrólogo, colocava seus personagens frente a situações-limites, obrigando-os a decidir dramaticamente. Mas, acreditava que em qualquer decisão cotidiana exercitaríamos nossa liberdade e iriamos construíndo nosso projeto de vida.
Um rapaz alistou-se no exército de libertação da França que se organizava para retomar a parte ocupada do país pelos nazistas. Sua mãe que já havia perdido um filho na guerra e cujo marido era um alcóolatra, pede que não vá. Ele gosta da mãe, não quer deixá-la só, mas também gosta de seu país e sente ser importante participar ativamente de sua libertação. A quem recorrer? Qualquer conselho que ouvir será um falso conselho. Ninguém tem mais condições do que ele de decidir. E, depois, nunca poderá saber se a decisão que tomou foi a mais acertada ou não. Ou seja, para assumir-se livre o homem necessita assumir-se responsável e ter vontade de construir sua existência.
ENCONTRE UM SENTIDO E SE COMPROMETA
ENCONTRE UM SENTIDO NA VIDA E SE COMPROMETA
Gandhi (1869 -1948), é um exemplo do quanto se torna profícua a vida daquele que assume sua responsabilidade frente a ela.
Nascido numa família de posses de Porbandar, na costa do mar Arábico, não muito longe de Bombaim, forma-se em Direito em Londres.
Dois episódios fazem-no descobrir o seu sentido na vida, conforme nos conta Louis Fischer, o americano amigo e biógrafo de Gandhi.
O primeiro foi quando, advogado recém formado, volta à Índia e principia a realizar tarefas judiciárias eventuais para o príncipe reinante de Porbandar. Seu irmão mais velho, Laxemidas, seguindo as pegadas do pai e do avô, trabalhava como secretário e conselheiro do príncipe, herdeiro do trono, e parecia estar na fila para ocupar o posto de primeiro-ministro do seu pequeno reino natal.
Porém, havia feito oposição ao Agente Político Britânico, de quem o seu destino dependia. Gândhi havia encontrado este inglês por casualidade em Londres. Laxemides pediu ao irmão que intercedesse junto dele a seu favor. A contragosto, Gândhi foi ter com ele. A conversa trilhou um caminho pedregoso. O Agente mandou que a guarda literalmente jogasse o irmão de Laxemides porta afora.
Gândi, contou mais tarde, ficou naquele momento sabendo o sentido que não queria dar a sua vida. Ato contínuo, aceitou trabalhar para uma firma indiana na África do Sul.
No ano de 1894, Gandhi viajava na primeira classe de um trem com passagem adquirida pelo correio quando foi flagrado por um branco. Este e a guarda do trem exigiram que Ghandi, como deviam fazer todos as pessoas de cor, fosse para a terceira classe. Gandhi resistiu e foi jogado para fora do trem na estação de Maritzburg. Em vez de voltar ao trem na terceira classe, acabou passando a noite na estação a refletir.
Naquela noite, conta ele, com vinte e quatro anos de idade, encontrou o sentido que procurava na vida: combater a terrível doença representada pelo preconceito de cor. O Agente Britânico de Porbandar e o policial branco de Maritzburg eram símbolos da sua fraqueza, bem como da fraqueza de seu povo.
Terá ele percebido naquela noite a existência de talentos latentes que poderiam emergir se devotados a serviço da sociedade? Até que ponto esta decisão foi alimentada pela indignação e pelo orgulho ferido? Ou pela percepção de que lhe habitava um sentimento de inadequabilidade para viver como a grande maioria vivia?
Seu primeiro discurso público foi numa reunião de indianos em Pretória. “Os indianos”, disse, “precisam primeiro melhorar a si mesmos, precisam melhorar os hábitos de higiene, precisam estudar, precisam aprender inglês, esquecer as diferenças de religião e de castas, precisam se tratar como querem que os ingleses os tratem”.
Para Gândi, o opositor deveria ser apartado do erro pela paciência e pela simpatia. Apartado não esmagado. Deveria se retribuir o mal com o bem até que o malfeitor se cansasse de fazer o mal. Acreditava que a política olho por olho tornava todos cegos, inclusive cegos de fúria.
Ainda que o adversário fizesse um jogo falso, Gândi estava sempre pronto a confiar nele pela vigésima primeira vez. Pregava que todos os seres humanos possuem um lado bom e um lado ruim. Tal constatação valia tanto para os ingleses como para os indianos. “Vamos nos relacionar com o lado bom. Vamos considerá-los a princípio sempre bons”, recomendava. “Às leis absurdas, vamos promover a desobediência e aceitar a punição”.
Todos os indianos eram obrigados a se cadastrar e andar na rua com um passe. Os ingleses não precisavam do passe. Gândi instigou todos a saírem sem o passe e aceitarem ser presos. Gândi chegou a se apresentar na polícia com centenas de seguidores para serem presos. Afinal, estavam sem o passe. Todos os indianos que trabalhavam nas minas acabaram presos. Não havia cadeias para tantos e as minas pararam de trabalhar: desobediência civil, sem violência; aceitar a violência, sem revidar. Número de presos: dois mil e quinhentos.
Em janeiro de 1915, com 46 anos, Gandhi voltou à India e o que fez lá transformou-o numa das três personalidades do século vinte.
Afirmava que não era um santo e sim um político que tentava ser santo para alcançar seu objetivo político. Gândi não foi apenas um político, foi um filósofo cuja receita para o bem viver era: encontre um sentido na vida e se comprometa por inteiro com ele.
A RENÚNCIA AO RESULTADO
A RENÚNCIA AO RESULTADO
A ausência de desejo adotada por ele, não era, entretanto, a renúncia hindu que conduz à indiferença pessoal, à passividade, à pobreza. Ao contrário, a dele era associada ao agir. Um agir pelo agir, tendo renunciado antes a todo o interesse nos resultados da ação. “Aquele que está levando em consideração o resultado – explicava ele - torna-se impaciente, se zanga, faz coisas indignas, se frusta. A renúncia ao resultado, cria a paz interior, a serenidade necessária para se lutar sempre”.
Eu sempre digo: o sujeito que é do ramo vai fazer aquilo para sempre. Não importa se tenha muito, pouco ou nenhum sucesso. Sucesso referente às vantagens exteriores como dinheiro e fama. Porque sucesso interior terá sempre. É rico quem descobre seu ramo, seu sentido na vida.
Quem descobre um sentido na vida, um sentido que entra “como uma luva”, e compromete-se por inteiro com ele alcança a ambicionada sensação de estar vivendo plenamente.
IOGUE CARMA
IOGUE CARMA
Gândi foi instruído na religião Hindu habituando-se à prática da meditação e da ioga. Existem os iogues que meditam e iogues que agem. O iogue de ação é o iogue carma. Gândi foi um iogue carma.
A fórmula de Gândi: iogue carma (não só meditar) + ausência de desejos + agir sem qualquer interesse no resultado = paz interior, serenidade permanente em suas ações.
Não havia nele nada que podia ser tirado. Estava acima de qualquer ameaça. Não tinha nenhum flanco aberto para ser atacado. Estava sempre agindo com determinação, compromissado com um objetivo definido.
“Renuncie a uma coisa – escreveu – somente quando desejar tanto alguma outra coisa, que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça”.
O mais difícil, segundo ele, era renunciar ao enaltecimento do próprio “ego”: posição social, fama, popularidade, status... Gândi passou a viver despido de tudo, assim como o mais pobre dos indianos. O povo passou a confiar nele. Nunca houve no mundo um político em que o povo mais confiou. Fez inúmeros jejuns quase à morte.
Foi ele a pessoa mais semelhante ao que se conta tenha sido Jesus Cristo. E ele não era cristão. Aliás, dizia ser hindu, muçulmano, cristão, judeu... e no início de sua vida chegou, inclusive, a se dizer ateu.
SATIAGRA
SATIAGRAA
Gândi criou um nome para o seu “poder”, para a sua “arma”: satiagraa. Satia = verdade; Agraa = firmeza ou força.
“Satiagraa – escreveu – é a reivindicação da verdade, não pela inflição do sofrimento ao opositor, e sim ao próprio eu”. Gândi nunca tentou agredir, humilhar ou derrotar os “brancos”.
Encontrar um sentido na vida que entre “como uma luva” e comprometer-se por inteiro com ele resulta na ambicionada sensação de se estar vivendo plenamente.
O acaso também é um fator a ser considerado. E se Gandhi, ao visitar o inglês a pedido do irmão, o encontra-se num momento de bom humor? E se não fosse visto e denunciado pelo branco ao policial no trem? Perceberia ele o sentido que não queria e o sentido que queria dar a sua vida?
UCRONIA
UCRONIA
A ucronia - o exercício de voltar no tempo, alterar um detalhe circunstancial na vida de alguém e reescrever ficcionalmente sua biografia – ressalta o papel do acaso no destino das pessoas e da própria humanidade.
Vários ucronistas se dedicaram a vida de Hitler mudando apenas um detalhe: sua aceitação na Academia Nacional de Viena. Ambicionava ser escultor e professor de artes, mas infelizmente para toda a humanidade, não foi aceito na Academia. Quem sabe sua passagem pela vida não teria se restringido a inocentes esculturas?
Pelé, maior desportista do século, poderia não ter existido. Edson Arantes do Nascimento poderia ter sido apenas Edson Arantes do Nascimento, mais um dos tantos talentosos e anônimos jogadores de futebol do interior do Brasil.
Ano de 1957. Segundo alguns jornais da época, o Santos excursionou pelo Rio Grande do Sul e em Pelotas os dirigentes santistas tentaram trocar Pelé, apenas um garoto, por um centroavante maduro que lhes impressionara bem. O clube de Pelotas não aceitou. O Santos voltou com Pelé. No ano seguinte, ele passou a ser titular no Santos e acabou na Seleção Brasileira campeã do mundo na Suécia.
Sabemos bem que os acasos fazem apontar nossa nave para o rumo norte, para o rumo sul, leste, oeste... Mas não importa os mares em que fomos levados a navegar. Importa é navegar comprometido, é encontrar um sentido na vida e comprometer-se por inteiro com ele.
O QUE FAZER DO QUE NOS FAZEM
IMPORTA É O QUE FAZEMOS DO QUE NOS FAZEM
Sim, o acaso cumpre seu papel, assim como a genética, a vida intra-uterina, o nascimento, as vivências infantis. Mas, para o filósofo, mesmo assim continuamos livres.
Uma das afirmativas de Sartre que mais me agrada é a que diz: “O importante não é o que fazem (a vida) de (para) nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que fazem de nós”.
LIÇÕES
LIÇÕES
1. Há que se distinguir sentido na vida com o sentido da vida. O primeiro, refere-se ao destino que dou a minha existência, o segundo, a reflexão que faço se o fenômeno vida tem algum sentido.
2. Não somos livres de determinantes biológicos, da família, da sociedade, da cultura que encontramos ao nascer. Mas somos livres para lidar com tudo isto, para construir nosso projeto, para encontrar um sentido na nossa vida.
3. Estamos condenados a ser livres! Ninguém poderá traçar por nós o sentido que daremos a nossa vida. As decisões que vamos tomando no cotidiano, as escolhas que vamos fazendo, só nós podemos fazê-las.
4. Quando entregamos nossa liberdade de decidir e optar a algum “conselheiro”, em verdade, estamos optando por falsa saída.
5. Aquele que está levando em consideração o resultado, torna-se impaciente, se zanga, faz coisas indignas, se frusta. A renúncia ao resultado, cria a paz interior, a serenidade necessária para se lutar sempre.
6. Renuncie a uma coisa somente quando desejar tanto alguma outra coisa, que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça.
7. O importante não é o que fazem (a vida) de (para) nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que fazem de nós.
8. A melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas.
9. Sua liberdade de balançar o braço termina onde meu nariz começa.
10. Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas.
11. Não podemos rejeitar uma hipótese se fluem dela conseqüências úteis à vida.
12. Tudo tem a sua hora, nem antes, nem depois.
13. Um homem não é tão ferido pelo que acontece, como pela sua opinião sobre o que acontece.
14. Oração dos índios Sioux: “Pai, ajudai-me a nunca julgar o próximo antes de ter andado sete léguas na suas sandálias”.
15. Observação, observação e mais observação.
16. Os sentidos podem nos induzir ao erro.
17. A erdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão.
18. Cuidado! O ser humano tende a se submeter a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
19. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
20. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
21. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
22. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
23. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
24. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
25. Não concordar cegamente com seu “professor”.
26. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
27. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
28. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
29. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
30. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
31. A palavra precisa concordar com o fato.
32. Tudo está se tornando nada é.
3. Estamos condenados a ser livres! Ninguém poderá traçar por nós o sentido que daremos a nossa vida. As decisões que vamos tomando no cotidiano, as escolhas que vamos fazendo, só nós podemos fazê-las.
4. Quando entregamos nossa liberdade de decidir e optar a algum “conselheiro”, em verdade, estamos optando por falsa saída.
5. Aquele que está levando em consideração o resultado, torna-se impaciente, se zanga, faz coisas indignas, se frusta. A renúncia ao resultado, cria a paz interior, a serenidade necessária para se lutar sempre.
6. Renuncie a uma coisa somente quando desejar tanto alguma outra coisa, que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça.
7. O importante não é o que fazem (a vida) de (para) nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que fazem de nós.
8. A melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas.
9. Sua liberdade de balançar o braço termina onde meu nariz começa.
10. Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas.
11. Não podemos rejeitar uma hipótese se fluem dela conseqüências úteis à vida.
12. Tudo tem a sua hora, nem antes, nem depois.
13. Um homem não é tão ferido pelo que acontece, como pela sua opinião sobre o que acontece.
14. Oração dos índios Sioux: “Pai, ajudai-me a nunca julgar o próximo antes de ter andado sete léguas na suas sandálias”.
15. Observação, observação e mais observação.
16. Os sentidos podem nos induzir ao erro.
17. A erdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão.
18. Cuidado! O ser humano tende a se submeter a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
19. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
20. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
21. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
22. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
23. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
24. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
25. Não concordar cegamente com seu “professor”.
26. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
27. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
28. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
29. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
30. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
31. A palavra precisa concordar com o fato.
32. Tudo está se tornando nada é.
52
52
Qual o sentido da vida? Por dois mil e quinhentos dólares, me informou uma voz feminina no telemarketing, eu embarcaria para uma viagem de onze dias pela Índa Espiritual. Visitaria Delhi, Reshikesh, Haridwar, Agra, Bangalore e Katmandhu.
- E descobrirei o sentido da vida?
- Bem... quase todos os que visitam a Índia fazem tal pergunta a algum monge – respondeu-me a voz feminina do telemarketing – O senhor poderá fazê-la também.
Não fui. Lembrei-me de um professor meu de psiquiatria que no aeroporto em Bombaim ao pegar um táxi viu surpreso um homem entrar no carro e ir de carona. A calçada de fronte ao seu hotel era local de residência para algumas famílias. E depois, dois mil e quinhentos dólares?!
Um amigo foi e fez a tradicional pergunta. Resposta:
- É uma fonte.
Em conhecida anedota, o monge responde a pergunta dizendo:
- 52.
- 52?! – exclama atônito o turista - O sentido da vida é 52?!
Surpreso com a reação do turista, o monge pergunta:
- Por que?! Mudou?
O cérebro do homo sapiens é um órgão limitado que evoluiu pela seleção natural para resolver problemas de vida ou morte. Com ele não se consegue reter sequer dez mil palavras na memória de curto prazo. Não se consegue enxergar na escuridão. Não se consegue tantas coisas mais.
Aceitamos como algo natural que um cão não tenha cérebro para entender nossa linguagem. Alguém já disse com sabedoria: “Não zombamos da águia por sua deselegância no chão”. Por que não reconhecer os limites de nossa mente?
Poderá haver em planetas distantes seres inteligentes com mais faculdades cognitivas do que as que possuímos ou com faculdades cognitivas diferentes. Serão eles, se realmente existirem, capazes de entender o sentido da vida?
De nada adiantaria ouvir dos alienígenas mais capacitados as conclusões a que chegaram sobre o sentido da vida: nosso cérebro não teria capacidade para entendê-las.
SABER O QUE PERGUNTAR
SABER FORMULAR A PERGUNTA
Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês, escreveu: “O supremo paradoxo de todo pensamento é tentar descobrir algo 
que o pensamento não pode pensar”. É admirável que uma espécie animal que habita a Terra já tenha evoluído a ponto de conseguir levantar questões que ela mesma não tem a menor condição de responder. Mas, já consegue “saber” pergunta. E isto lhe é útil: ajuda a delimitar as fronteiras entre o que sabe e o que procurará saber.
que o pensamento não pode pensar”. É admirável que uma espécie animal que habita a Terra já tenha evoluído a ponto de conseguir levantar questões que ela mesma não tem a menor condição de responder. Mas, já consegue “saber” pergunta. E isto lhe é útil: ajuda a delimitar as fronteiras entre o que sabe e o que procurará saber.
Perceber que não alcançaremos a resposta e que ninguém vai respondê-la por nós, é... é mais saber.
Voltemos ao Existencialismo de Sartre. Qual o sentido da vida? Em outras palavras, qual o sentido do existir? A pergunta é o espelho que diz: “Você é algo que está vivo, que existe; se existe hoje é por que houve um tempo em que não existia e haverá outro em que não mais existirá; você é algo que não sabe porque existe e que sabe que deixará de existir e que deixará de existir sem saber qual o sentido do existir”.
Estamos sós frente ao espelho. Isolados. Em solidão. O isolamento existencial vem a ser um abismo intransponível. O existir é uma aventura solitária. Nascemos “sozinhos” e morreremos “sozinhos”.
O isolamento existencial não é o isolamento intrapessoal (estar separado de partes de si mesmo), nem é o isolamento interpessoal (estar longe das outras pessoas, solidão devido a fatores geográficos, profissionais ou de personalidade). O isolamento existencial é porque é; é inerente ao fenômeno existir.
Quando nos demos conta estávamos vivos, como que acordados de um sono sem sonhos. Quando menos esperamos, deixaremos de existir. Não comandamos nem a entrada e nem a saída deste fenômeno. Nem sabemos qual o sentido dele.
Teremos coragem para encarar tudo isto de frente? Há saída neste beco-sem-saída que nos metemos ao formular a irrespondível questão?
CONSTRUINDO UM BELO DESENHO
CONSTRUINDO UM BELO DESENHO
Em Servidão Humana de Somerset Maughan encontramos a seguinte sugestão: “A vida não tem significado algum, e o 
homem não serve a fim algum. É indiferente ele ter nascido ou não ter nascido, estar vivo ou morto. A vida é sem significado, e a morte, sem conseqüência. O fracasso não tem importância, e o êxito não leva a nada. Todavia, como no tapete persa o artesão elabora seu desenho sem fim algum senão o prazer de seu senso estético, assim pode um homem viver sua vida. Dos variados acontecimentos de sua existência, de seus feitos, sentimentos, pensamentos, ele pode fazer um desenho, regular, caprichado, complicado e belo”.
AJUDAI-VOS UNS AOS OUTROS
AJUDAI-VOS UNS AOS OUTROS
Eça de Queiroz, por sua vez, filosofou assim: “Formamos uma imensa caravana que marcha confusamente para o nada. Cerca-nos uma natureza indiferente, impassível, mortal como nós, que não nos entende, nem sequer nos vê, e de que não podemos esperar socorro nem consolação. Só nos resta, este secular preceito: ‘Ajudai-vos uns aos outros’”.
A alternativa proposta pelo escritor português consiste em nos identificarmos com nossa espécie. Ajudá-la a prosseguir e, quem sabe, alcançar num futuro muito distante a resposta para o que agora não temos.
Em seu livro Imagined worlds, Freeman J. Dyson, físico inglês radicado nos Estados Unidos nos dá esperanças. Valeria a pena nos dedicarmos para a perpetuação da espécie já que ela poderá “chegar lá”. Seremos, como exemplares isolados quem somos, extintos de qualquer forma. Mas haverá algo mais útil a fazer?
Segundo Dyson, é possível que ao longo do milênio a vida se espalhe pelo sistema solar. Em mil anos nossos descendentes poderão ter se dispersado de tal modo que nenhuma autoridade central será capaz de regular suas atividades ou de até mesmo saber de suas existências. Nossa espécie, hoje uma só, se desdobrará em muitas.
É bem possível que alguns de nossos descendentes – pela alteração do gene do envelhecimento e pela reposição de órgãos, entre outros avanços científicos – possam beirar a imortalidade. É possível que seja preservada na Terra nossa espécie atual, ou uma bem parecida com a atual, como um museu referente aos tempos em que existiam seres mortais. Seres que não sabiam responder qual o sentido da vida.
LIÇÕES
LIÇÕES
1. Não zombamos da águia por sua deselegância no chão.
2. O supremo paradoxo de todo pensamento é tentar descobrir algo que o pensamento não pode pensar.
3. É admirável que uma espécie animal que habita a Terra já tenha evoluído a ponto de conseguir levantar questões que ela mesma não tem a menor condição de responder.
4. Quando nos demos conta estávamos vivos, como que acordados de um sono sem sonhos. Quando menos esperamos, deixaremos de existir. Não comandamos nem a entrada e nem a saída deste fenômeno. Nem sabemos qual o sentido dele.
5. A vida é sem significado, e a morte, sem conseqüência. O fracasso não tem importância, e o êxito não leva a nada. Todavia, como no tapete persa o artesão elabora seu desenho sem fim algum senão o prazer de seu senso estético, assim pode um homem viver sua vida. Dos variados acontecimentos de sua existência, de seus feitos, sentimentos, pensamentos, ele pode fazer um desenho, regular, caprichado, complicado e belo.
6. Formamos uma imensa caravana que marcha confusamente para o nada. Cerca-nos uma natureza indiferente, impassível, mortal como nós, que não nos entende, nem sequer nos vê, e de que não podemos esperar socorro nem consolação. Só nos resta, este secular preceito: ‘Ajudai-vos uns aos outros’.
7. Há que se distinguir sentido na vida com o sentido da vida. O primeiro, refere-se ao destino que dou a minha existência, o segundo, a reflexão que faço se o fenômeno vida tem algum sentido.
8. Não somos livres de determinantes biológicos, da família, da sociedade, da cultura que encontramos ao nascer. Mas somos livres para lidar com tudo isto, para construir nosso projeto, para encontrar um sentido na nossa vida.
9. Estamos condenados a ser livres! Ninguém poderá traçar por nós o sentido que daremos a nossa vida. As decisões que vamos tomando no cotidiano, as escolhas que vamos fazendo, só nós podemos fazê-las.
10. Quando entregamos nossa liberdade de decidir e optar a algum “conselheiro”, em verdade, estamos optando por falsa saída.
11. Aquele que está levando em consideração o resultado, torna-se impaciente, se zanga, faz coisas indignas, se frusta. A renúncia ao resultado, cria a paz interior, a serenidade necessária para se lutar sempre.
12. Renuncie a uma coisa somente quando desejar tanto alguma outra coisa, que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça.
13. O importante não é o que fazem (a vida) de (para) nós, mas o que nós próprios fazemos daquilo que fazem de nós.
14. A melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas.
15. Sua liberdade de balançar o braço termina onde meu nariz começa.
16. Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas.
17. Não podemos rejeitar uma hipótese se fluem dela conseqüências úteis à vida.
18. Tudo tem a sua hora, nem antes nem depois.
19. Um homem não é tão ferido pelo que acontece, como pela sua opinião sobre o que acontece.
20. Oração dos índios Sioux: “Pai, ajudai-me a nunca julgar o próximo antes de ter andado sete léguas na suas sandálias”.
21. Observação, observação e mais observação.
22. Os sentidos podem nos induzir ao erro.
23. A verdade é verdade apenas num determinado estágio de compreensão.
24. Cuidado! O ser humano tende a se submeter a quem detém o tripé: verdade verdadeira, teoria totalizante e estratagemas para se fazer apaixonar.
25. Há situações tão difíceis e sofridas que (“graças a deus”!) podemos fantasiar.
26. Deus está muito longe e nem sempre tem vontade de se envolver na confusão perpétua e no rebuliço comum aos humanos.
27. Um tirano ficará sempre do lado de fora, só entrará em nossas mentes e ocupará nossos pensamentos e sentimentos se nós deixarmos.
28. Precisamos exorcizar desejos impostos, não naturais e nem necessários que habitam nossas mentes.
29. Se queremos viver bem, vivamos incógnitos.
30. Não crer que tudo que existe e acontece se deve à vontade dos deuses.
31. Não concordar cegamente com seu “professor”.
32. Não devemos fazer aos outros o que não queremos que façam a nós.
33. Quando não sabemos algo, o reconhecimento de que não o sabemos é saber.
34. Se expulsarmos os desejos, viveremos livres de apegos e alcançaremos paz interior.
35. Não estamos sós no sofrimento: na vida é inevitável a experiência do sofrer, é condição humana.
36. Uma qualidade é o ponto intermediário entre dois extremos, cada um dos quais é um defeito.
37. A palavra precisa concordar com o fato.
38. Tudo está se tornando nada é.
MÉDICO DOS MORTOS
MÉDICO DOS MORTOS
Nos intervalos de um congresso de psiquiatria em Cuba, visitava um ou outro local em Havana e ouvia algumas histórias. Creio que foi meu colega Carlos Acosta Nodal que ao mostrar o cemitério principal – Quinta de Los Pinos (?) – me falou no médico dos mortos.
Algum antepassado havia lhe contado que, após acompanhar o cortejo fúnebre de um amigo, antes de baixá-lo à sepultura, um senhor pequeno e bem arrumado se aproximou. Através do vidro do caixão dirigiu uma rápida olhada ao rosto do defunto e fez um gesto de positivo: o defunto é defunto. O médico dos mortos, de plantão no cemitério, cumprira mais uma vez sua função.
O medo de ser enterrado vivo faz parta do imaginário. Temos horror à morte. Ao mesmo tempo, propositadamente corremos riscos.
PROGRAMADOS PARA O RISCO
PROGRAMADOS PARA O RISCO
Há pouco tempo assisti Gerald Wilde da Queen’s University demonstrar que correr risco de vida é mais um aprendizado genéticamente facilitado. Sim, nos expomos ao perigo a toda a hora e a todo o momento. A criança pequena quer fazer atividades além de sua capacidade. Temos de ensiná-la a se precaver do perigo. E o adolescente? É mais fácil convencê-lo a subir ou a não subir numa moto...?
Pesquisadores escondidos observaram motoristas cruzando uma passagem de trem em região pouco habitada no norte do Canadá. Um motorista teve seu carro atingido pelo trem. Três quartos de todos os indivíduos observados se portavam como o motorista acidentado se portou e foram considerados como indivíduos que se expunham a risco. Cortaram as árvores em volta do cruzamento, a visibilidade melhorou muito. Porém, três quartos continuaram a correr o mesmo risco, pois com mais visibilidade imprimiam mais velocidade.
Os genes determinam a produção dos chamados neurotransmissores, substâncias que saem de um neurônio e entram noutro. Ou seja, promovem a comunicação entre nossas células cerebrais. É possível que se expor ao perigo seja uma maneira de estimular a produção de algumas dessas substâncias. Com elas temos uma sensação boa, que nos atrai. Assim, os adolescentes homens teriam um nível menor dessas substâncias prazeirosas e precisariam de correr mais riscos do que as mulheres e os homens mais velhos.
Se não houvesse essa atração pelos riscos, teria existido um Gagárin, um Cristóvão Colombo? A humanidade já teria saltado de pára-quedas? Alguém andaria em seu automóvel numa autopista com centenas de carros a sua frente e centenas a sua traseira?
Desprezar a vida é necessário para vivê-la com intensidade. Se não, ficaríamos paralisados de medo ante a verdade de que a qualquer hora algo pode acontecer e nos tirar a vida.
Ao se discutir o tema da morte, há que se levar em conta esta constatação.
CLASSIFICAÇÃO DOS PACIENTES TERMINAIS
CLASSIFICAÇÃO DOS PACIENTES TERMINAIS
Outra questão: os sentimentos despertados pelo final da vida dependem também do tipo de morte anunciada.
Francisco Barreto publicou há alguns anos, na revista Psicossomática,uma proposta de classificação que reúne os pacientes terminais em quatro grupos.
Potencialmente terminais. Pacientes gravemente enfermos, com risco de vida, mas cujo quadro é potencialmente reversível. Por exemplo: após um acidente automobilístico, o paciente com edema cerebral está na CTI. A família e os amigos vivenciam o medo de sua morte.
Pseudoterminais. Pacientes que se acreditam com doença terminal sem estarem, fantasiam que estão à morte. Pessoas que interpretam negativamente seus sintomas. Lembro-me de uma mulher que, após receber a visita de rotina do capelão do Hospital, disse: “Eu sabia que os médicos estavam me enganando”.
Mentalmente terminais. Grupo heterogêneo com algo em comum: neles a morte começa na mente. Por um lado, temos os pacientes potencialmente suicidas, em geral devido a um quadro de depressão. Outros que vivem uma realidade insuportável e imutável, causadora de grande sofrimento. Mas também alguns que já deram seu recado nesta vida e a morte parece ser algo naturalmente esperado. Jorge Luis Borges, escritor argentino, contou que sua mãe com mais de noventa anos, desejava morrer. Dizia a ele que já vivera o suficiente, mais inclusive do que seus amigos. Que este mundo já não há interessava mais. Despedia-se dele todas as noites, esperando morrer no sono. No outro dia, frustrada em seu desejo de morrer, permanecia irritada por algumas horas. À noite, despedia-se de novo.
Verdadeiramente terminais. A evolução da doença do paciente o levará inevitavelmente a despeito de todos os cuidados, toda adequação de recursos e toda a certeza no tocante a diagnóstico e prognóstico, a um declínio progressivo e inexorável para a morte. Estas pessoas, mais do que nenhuma outra, acabam sendo obrigadas a refletir sobre a morte, a buscar uma saída que lhes permita viver seu período final em paz. É triste acompanhar aquelas que não conseguem encontrar uma solução para o medo da morte. A angústia impede o sono. Como fechar os olhos, relaxar e dormir sabendo que o fim está bem próximo?
ETAPAS QUE PRECEDEM O FIM
ETAPAS QUE PRECEDEM O FIM
Elizabeth Kübler-Roos passou quase toda a sua vida acompanhando pessoas no final da vida e observou que, em geral, nesta situação, a pessoa vivência uma sucessão de etapas.
Negação. Conversa conosco como se nada estivesse acontecendo. Conta de planos pessoais para um futuro muito distante.
Revolta. Num segundo momento, encara a realidade e se rebela: “Por que acontecer isto comigo e logo agora?”
Negociações. Muitas feitas interiormente. Se eu fizer uso correto dos remédios, vou viver mais. Se fizer aquela boa ação, ainda vai ocorrer uma cura. E negociações com o médico: se fizer isso, continuará o tratamento em casa, etc.
Depressão. A tristeza e o desânimo por se perceber sem saída, algo que absolutamente não quer vai inevitavelmente ocorrer.
Resignação. A percepção de que a vida é um fenômeno passageiro para todos. Aqui aparece o auxílio ou da religião ou do filosofar.
O medo da morte só ocorre na nossa espécie porque é a única quem tem noção do futuro. Aliás, na criança, acredita-se que o medo surge quando ela começa a visualizar a existência de futuro em sua própria vida. Aos seis anos poderá considerar a morte como processo reversível: “leva o gatinho ao doutor que ele irá reviver”. Em geral, aos oito anos a criança começa a perceber que a morte pode ocorrer a qualquer momento. Um de meus filhos, com essa idade, certa vez refletiu, angustiado, sobre sua morte. Para aliviá-lo, ocorreu-me naquele momento dizer: “Você tem tantos anos de vida pela frente que quando chegar a tua hora já estarás enjoado de viver”. E ele: “Quero viver mesmo enjoado”.
Para o adolescente o mal poderá ocorrer com o próximo, nunca com ele mesmo. A inconsciência do perigo é comum na adolescência normal. Quando portadores de doenças terminais estão mais preocupados com a aparência exterior: efeitos colaterais da quimioterapia, queda de cabelo, do que com a própria gravidade da doença em si.
A IMAGINAÇÃO E A RELIGIÃO NO ALÍVIO DO MEDO
A IMAGINAÇÃO E A RELIGIÃO NO ALÍVIO DO MEDO
A teoria religiosa foi o primeiro discurso articulado visando aliviar o nosso medo da morte. Favoreceu a evolução, a medida em que deixava o homem primitivo mais tranqüilo frente ao fim.
O Homo sapiens sapiens, o homem atual, surgiu na Europa há aproximadamente trinta e cinco mil anos. É provável que a teoria religiosa seja obra anterior. O Homo sapiens neanderthalensis - assim designado porque seus fósseis foram descobertos em 1857 no vale de Neander, perto de Dusseldorf, na Alemanha - já sepultava os mortos com um certo cerimonial.
Um dos dois, ou ambos em separado, criou deus. Em outras palavras, passou a utilizar o pensamento abstrato para desenvolver fantasias boas. Aqueles exemplares que assim conseguiram fantasiar, tenderam a sobreviver mais que os outros. Provavelmente, conseguiram permanecer mais tranqüilos, sem o desgaste do medo do fim.
Os desenhos das cavernas do Paleolítico Inferior por muito tempo intrigaram os arqueólogos. A galeria de pinturas de Niaux, por exemplo, acha-se a mais de meia milha da entrada da caverna. Ninguém poderia ver as criações do artista a não ser à luz imperfeita de fachos fumegantes feitos à base de gordura animal.
Além disso, há sinais de que o homem olhava com grande indiferença a sua obra de arte depois de concluída. Não lhe dedicava afeição crescente, ao contrário, usava a mesma superfície para outra produção. Encontraram-se numerosas pinturas superpostas.
O importante não era a obra acabada em si mesma, a estética, mas sim o ato de fazê-la. A arte não se destinava a agradar os sentidos e sim a aliviar terríveis sofrimentos.
Encurralado nas profundidades das cavernas, para fugir do extermínio devido a mudanças bruscas do clima, o homem temia a morte pela falta de alimentos. Minimizava tal temor desenhando caçadas em que era bem sucedido, realizando em fantasia o desejo de todo o grupo.
Acredita-se que o desenhista desempenhava um papel fundamental, dependendo a existência da comunidade de sua competência. À medida que aliviava temores avassaladores, permitia que a calma voltasse a predominar.
A consciência da morte, a percepção de que todos os seres nascem, sofrem um processo de involução e morrem, marcou profundamente o homem. Ocorre quando o homem primitivo pensa de forma abstrata e consegue perceber a dimensão do futuro e quando ele já desenvolvera em muito a capacidade de se colocar no lugar do companheiro, de se identificar com o outro. Pois a morte é percebida no outro. Morre um líder do grupo: aumenta a dificuldade para encontrar sítios de árvores frutíferas, é mais difícil caçar animais. A fome bate, a ausência do líder é sentida e, como resultado, o fenômeno da morte começa a ser captado pelo cérebro primitivo.
O MUNDO INTERIOR
O MUNDO INTERIOR
Quando a realidade exterior é percebida como intolerável, o homem primitivo fez crescer o único refúgio seguro que lhe restara: seu mundo interior. Nele pode distorcer o mundo real, fantasiá-lo como bem entender. Pode “criar” outra realidade.
O homem primitivo desenvolveu teorias pelas quais racionalizava atribuindo a si não um fim próximo e inevitável, mas a vida eterna. Estabeleceu a existência de um outro mundo e povoou-o com seres semelhantes a si, porém mais poderosos. Somente passava para o outro mundo quando os habitantes de lá assim o desejavam. Sem dúvida, esses seres eram muito poderosos, eram deuses.
O cenário estava pronto para o surgimento da primeira teoria sobre as doenças: a teoria religiosa. Um pensar que aliviava os estresses e promovia paz, calma, ou seja, mais possibilidade de ter sucesso na luta pela sobrevivência e pela perpetuação de seus genes.
A VONTADE DOS DEUSES
A VONTADE DOS DEUSES
Os deuses eram responsáveis pela passagem deste para o outro mundo, pela morte e, em conseqüência, pareciam evidentes os seus poderes sobre as doenças. Resumindo: a causa das doenças estava na vontade dos deuses, e a cura, óbvio, também. O foco inflamatório seria debelado no momento em se agisse sobre sua causa, ou seja, se modificasse a vontade dos deuses. Portanto, somente poderia ser "médico" aquele que conhecesse métodos destinados a tal fim: os mágicos, os feiticeiros e os sacerdotes.
Aliás, o pensamento hegemônico da época, pobre em conhecimentos, apontava sempre para causas divinas. Quase nada se sabia explicar. Como conseqüência: os deuses eram os causadores de tudo. A "medicina", como sempre, acompanhava a sociedade em que estava inserida.
A Civilização Egípcia deixou contribuições significativas à história da medicina no que se refere à higiene pública, ao uso sistemático de ervas medicinais, à realização de trepanações com sobrevida e outras mais. Entretanto, tais eventos subordinavam-se à medicina religiosa. As trepanações tinham como finalidade não a consecução de modificações no corpo, mas permitir a saída de maus espíritos causadores da doença. A higiene pública visava não propriamente ao controle de doenças transmissíveis, mas a cuidar do corpo para a outra vida.
Com as Civilizações da Mesopotâmia o panorama permaneceu semelhante. Os assírios, buscando manter a sanidade de seus exércitos, deram atenção considerável à medicina. Mais de quinhentas drogas tanto vegetais como minerais foram catalogadas com indicações para seu uso.
Descreveram-se sintomas de algumas doenças que geralmente se atribuíam a causas naturais, embora fossem comumente empregados como métodos de curas os encantamentos e se prescrevessem misturas repugnantes para a expulsão de demônios.
A CAUSA DAS DOENÇAS NÃO ESTÁ NOS DEUSES
A CAUSA DAS DOENÇAS NÃO ESTÁ NOS DEUSES
Com o surgimento da civilização na Grécia, a medicina religiosa viu desprender-se de suas amarras a concepção científica ou hipocrática da doença. Todavia, nos primeiros séculos dessa civilização, o pensamento religioso era muito forte. Os médicos que se projetavam eram unidos a divindades. 
Na Ilíade, Homero permite supor a existência de médicos não sacerdotes: ..."Um homem que cura vale por muitos homens, exerce a sua arte absolutamente racional dentro de um mundo mágico e repleto de mitos". Asclépio, também chamado Esculápio, aparece na Ilíade como um médico acatado e famoso, bem sucedido ao tratar os feridos da Guerra de Tróia. Porém, mais adiante, foi transformado em deus e absorvido pela medicina religiosa que construiu templos em sua homenagem onde eram realizadas "curas" milagrosas baseadas na força da sugestão. A serpente - até hoje emblema médico - era presença obrigatória nestes santuários. Significava tanto uma divindade subterrânea como o poder de renovação da vida, traduzidos pela troca periódica da pele que nela se processa.
Na Ilíade, Homero permite supor a existência de médicos não sacerdotes: ..."Um homem que cura vale por muitos homens, exerce a sua arte absolutamente racional dentro de um mundo mágico e repleto de mitos". Asclépio, também chamado Esculápio, aparece na Ilíade como um médico acatado e famoso, bem sucedido ao tratar os feridos da Guerra de Tróia. Porém, mais adiante, foi transformado em deus e absorvido pela medicina religiosa que construiu templos em sua homenagem onde eram realizadas "curas" milagrosas baseadas na força da sugestão. A serpente - até hoje emblema médico - era presença obrigatória nestes santuários. Significava tanto uma divindade subterrânea como o poder de renovação da vida, traduzidos pela troca periódica da pele que nela se processa.
Foi no século V a.C. que Hipócrates declarou: “A causa das doenças não está na vontade dos deuses. Está no corpo e, portanto, vamos estudar o corpo”. Os seguidores de Hipócrates levaram muito tempo para adquirir credibilidade semelhante à dos religiosos na arte de preservar a vida. Se não vejamos este epitáfio sobre um túmulo grego: “As visitas repetidas dos médicos me mataram”.
RELIGIÃO COMO BUSCA DO SUCESSO
RELIGIÃO COMO BUSCA DE SUCESSO
As práticas religiosas consistem em tentativas de se obter sucesso quando se esgotaram todas as técnicas usuais para a obtenção do sucesso. Rezar é “pedir que as leis do universo sejam anuladas em benefício de um único suplicante, confessadamente indigno”.
Certa vez, levei uma delegação de garotos a participar de um campeonato de futebol em La Rioja, norte da Argentina. No Estádio Rioja Júnior, numa manhã fria, o argentino José Maria me contou do garoto que sentira dor no joelho após um jogo de futebol infantil e, meses depois, consciente de tudo, morria com câncer ósseo. Homem inteligente e afetivo, as feições de José Maria, meu amigo recente, suas feições, se pintadas ou fotografadas, dariam a imagem exata da eterna indagação: "há sentido na vida?"
José Maria levou nossa delegação a passar um dia no Lago del Dique. Ocorre que La Rioja se situa no final de um grande deserto. Para lá chegar rodamos seis horas por uma imensa planície de areia, cactos, pontes sobre o leito de rios secos, sem povoação nem nada ao longo da rodovia. Encontramos uma cidade de pouco mais de cem mil habitantes, com raros edifícios devido à possibilidade de terremotos, situada no final do deserto e no início de montanhas pré-Andinas.
Há sete meses não chovia. A água da cidade vem do Lago del Dique, reservatório situado no alto, por entre as montanhas, e alimentado por riachos dos degelos andinos.
Subimos numa elevação onde havia uma pequena capela, local para socorro e consolação. José Maria, católico de família - havia-me dito que, para ele, Evita era uma santa - ajoelha-se frente à capela e reza pelos filhos que, naquela mesma noite, tentavam a sorte num programa de calouros na TV em Buenos Aires como cantores juvenis.
Que mais ele poderia fazer pelo sucesso de seus filhos? Quantas rezas deve ter feito pela vida do menino que falecera de câncer ósseo?
José Maria, ajoelhado, continuava a rezar. Seu corpo se dobra humilde. Paradoxalmente, sua mente se ergue em soberba. Afinal, não é presunçosa a mente que crê ser ouvida pelos deuses? E eu que não creio em deuses? Não será ainda maior minha arrogância? Nietzsche: "Se existissem deuses, como é que eu iria suportar não ser deus? Por conseguinte, não há deuses".
Situações inesquecíveis, como a vivida em La Rioja com meu amigo José Maria, me fizeram pragmático e utilitarista em meu trabalho como médico frente a alguém que vive o drama de sua morte ou da morte de alguém que quer muito.
SE É ÚTIL CRER
SE É ÚTIL CRER...
Recordemos o já citado pragmatista William James: “Uma idéia é verdadeira enquanto a crença nela é proveitosa para nossas vidas”. Ou: “Uma crença é verdadeira quando seus efeitos são bons”. Ou ainda: “Se a hipótese de Deus age satisfatoriamente, é verdadeira. Se é uma hipótese útil, isso é o bastante”. Recordemos o também já citado utilitarista John Stuart Mill: “São boas as ações que promovem de fato a felicidade”. Sim, rezar faz bem.
Lembro que meu avô materno, Armando Annes, lidou assim com sua morte. Estava com oitenta e seis anos e gostava muito da vida. Por muito tempo fora agnóstico, achava que morreria eternamente. Porém, passou a ter uma sucessão de pequenos infartos. O fim da vida, muito próximo, lhe provocava angústias. Como viver seus últimos momentos sem elas? Eu o ouvia telefonar a seu irmão mais novo, Gervazinho, membro da religião Espírita: “Gervazinho, venha cá me fazer acreditar na tua religião”. Passados alguns dias, telefonava novamente: “Gervazinho, volte aqui que eu já não estou acreditando mais”. Ele não era mesmo muito convincente.
Descobri recentemente por seu filho Alceu que o Gervazinho, naquela época, não acreditava em vida após a morte. Para ter algum conteúdo e satisfazer o irmão, antes das visitas lia alguma coisa...
QUANDO É ÚTIL NÃO LEMBRAR
NEGAÇÃO ÚTIL
Quantas vezes escutei Paulo Francis, jornalista, declarar no programa Manhatan Conection algo mais ou menos assim: “Eu não vou morrer. Esta preocupação não é para mim. Declaro que não vou morrer e não tenho com o que me preocupar”.
O filósofo Spinoza (1634-1677), em sua época, já dizia: “O homem livre no que menos pensa é na morte”.
Na maior parte do tempo, andamos distraídos, distraídos com as diferentes nuances da vida, com a mundalidade das coisas, perdemo-nos em meio aos estímulos do cotidiano. E, sabiamente, mesmo tendo consciência do fim, não perdemos tempo pensando nele e no que poderia haver depois. Não perdemos tempo de vida nos preparando para o depois. A vida é no presente, no agora e... não vamos desviar o foco.
A MORTE PARA SARTRE
A MORTE PARA SARTRE
Para Sartre, a idéia da morte, ou a experiência limite da morte, ao mesmo tempo nos angustia e nos salva do viver distraído, do “desperdício”. Ajuda-nos a perceber nossa responsabilidade em relação a vida; a deixar de lado o viver “descuidado” voltado apenas para a forma de viver. A morte nos faz adquirir a consciência de que estamos existindo. Com ela presente, passa-se a “cuidar de si”, da forma de viver volta-se para a existência.
Mas, voltar nosso pensamento para o existir nos traz a angústia da finitude e nossa solidão existencial. Habitualmente nos defendemos deste sofrimento de duas maneiras:
(1) A crença em um salvador e a tentativa de fundir-se com ele. O salvador pode ser um deus, um santo, uma ídolo religioso, uma seita. Pode ser um líder político, ou uma paixão amorosa: tentamos escapar do isolamento tornando-nos parte de uma outra pessoa ou a outra pessoa parte de nós, uma fusão.
O fundir-se com o outro trás como conseqüência a perda da consciência de si mesmo. O que pode parecer um amor imenso, não passa de um modo defensivo. Há a utilização do outro e não um encontro com o outro. A fusão defensiva pode ser com todo um povo. Os grandes líderes históricos não temeram a morte. Provavelmente, por se sentirem fundidos com seu povo e, assim, “continuarem” vivos.
(2) A crença de que se é especial. É uma defesa que funciona assim: “Sócrates era mortal. Sócrates era humano. Os humanos são mortais. Eu sou humano... mas... comigo não... Algo lá no fundo me diz que comigo vai ser diferente, que sou alguém especial”.
Uma fantasia que nos dá coragem para se individualizar e sair por aí construindo projetos próprios. Para Sartre, esta é a defesa mais eficiente: nos permite crescer, separar-se, ser autônomo, livre. Dá a possibilidade para o indivíduo “ser pai de si mesmo”.
A MORTE PARA EPICURO
A MORTE PARA EPICURO
Não convém esquecer a reflexão de Epicuro. Para ele, a vida seria sempre uma história de átomos que se juntam e depois se dispersam. Um grupo de átomos particulares se junta para compor um corpo e uma mente na forma de uma única entidade, um ser humano, cuja dispersão final é inevitável. Mas essa dispersão não deve ser temida.
A entidade que somos cessa de existir quando ocorre a dispersão. Não existe ninguém que venha a estar morto: enquanto existimos não há morte, e quando há morte, não existimos. “A morte nada é para nós” - diz Epicuro - pois o que é dissolvido não tem sensação”. O que há é uma mudança de estado. Por exemplo, ao ser fervida a água passa a ser vapor. A água morreu?
A MORTE TEM A CARA QUE A GENTE DER A ELA
A MORTE TEM A CARA QUE A GENTE DER A ELA
Cabe a cada um pintá-la como se sentir melhor. Como médico, procuro acompanhar a solução encontrada pelo paciente. Não tem a menor importância qual é a sua opção religiosa ou reflexão filosófica. Importa que consiga viver tranqüilo com os seus e com as suas atividades e interesses seus últimos dias.
Quanto a informar ou não o paciente da gravidade de sua doença, a resposta é: ele tem todo o direito de saber e todo o direito de não querer saber. Vamos informando-o aos poucos, a conta-gotas e respeitando a opção que ele vai tomando.
A meu ver, a vida não deixa de ser uma grande piada. A começar que ela nos é emprestada. De repente, estamos nela. Acabamos nos apaixonando por ela. De repente, sem mais nem menos, é cancelado o empréstimo. A água se transforma em vapor. Não dá para levar um fenômeno assim tão a sério.
Brinco lembrando da criação de galinhas que havia no quintal de minha casa de infância. Uma determinada cozinheira que tivemos tratava tão bem as galinhas que bastava ela sair ao pátio e as aves corriam até ela. Na hora de cozinhar o almoço, uma galinha corria feliz ao encontro da cozinheira e, em vez de receber milho, via seu pescoço ser torcido. Não é mais ou menos assim para todos nós?
Nos velórios de minha família sempre admirei o clima de resignação predominante. Passamos horas junto ao caixão, depois carregamos o caixão até o túmulo. Uma última olhada e, com o auxílio de cordas ele é baixado. Na hora de depositar o caixão no túmulo, um primo fazia força com as cordas quando toca o seu celular: “Alô”- diz ele. Suponho que do outro lado perguntaram se dava para falar, onde ele estava, algo assim. Por que só o ouvi dizer: “Estou baixando o caixão da tia”. Simples, não é? Como simples foi o comentário de um sujeito quando lhe comunicaram da morte do filho: “Eu sempre soube que meu filho não iria viver para sempre”.
A PERDA IMAGINADA
A PERDA IMAGINADA
Penso que nós sofremos muito com a morte porque não perdemos somente nossa vida real, perdemos um monte de imaginações e de fantasias que nada tem a ver com a vida real.
Somos unidades de sensação e conhecimento. Sensações oriundas de nosso interior: os nossos sentimentos. Sensação oriundas do exterior e obtidas pelos órgãos dos sentidos: visão, audição, olfato, tato, gosto. Sofremos ao morrer a duríssima perda de não mais seguir experimentando sensação e mais conhecimento. A perda que vivenciamos, pelas fantasias criadas sobre a vida, entretanto, é maior ainda.
A começar pela fantasia da vida eterna, alimentada pelas religiões. E uma eternidade passada em algo melhor do que aqui: paraíso, nirvana, proximidade de deus, etc. Portanto, morrer é muitíssimo mais do que perder mais sensação e conhecimento, é perder uma vida para sempre e uma vida que de tão maravilhosa nem conseguimos sequer imaginá-la corretamente.
Em outras palavras, o problema está no futuro. Perder um futuro tão eterno e maravilhoso, não é possível. Perder apenas um futuro que necessária e invariavelmente vai acabar em breve e que consiste em apenas mais um tempo de sensação e conhecimento é mais fácil de tolerar com serenidade, de sofrer sem enlouquecer.
