O PACIENTE QUE ME FEZ MÉDICO
O PACIENTE QUE ME FEZ MÉDICO
Estava e não estava na medicina. Passava por média na faculdade pelo hábito de estudar. Na crônica anterior contei QUE NÃO QUERIA SER MÉDICO. A última prova prática de semiologia acabou me trazendo uma decisiva experiência modificadora de vida.
Precisava de dez para não entrar em exame. Na teórica e nas outras matérias todas eu já havia passado por média. Mas tirar dez na última prova prática de semiologia?! Pelo medo de não conseguir, fiquei atrás da fila. O professor me disse: “Você será o último que vou avaliar. Terá de me esperar duas horas ou mais”. Meu exame seria com um paciente que estava no último andar do hospital universitário.
Encontrei no leito um rapaz de uns vinte e seis anos. Engenheiro, portador de uma cardiopatia congênita. Após examiná-lo, ele perguntou o que eu tinha auscultado em seu coração. Expliquei. Perguntou quanto eu precisava na prova. Respondi. E ele: “Dez!? Impossível! Com boa vontade, o professor te dá um seis ou sete”. Poxa! Fazer o quê?
Foi então que ele perguntou: “Quer que eu te ensine?”. “Claro, quero muito!”. Ele, inteligente que era, sabia tudo da doença que o acompanhara desde sempre. E era um professor exigente. Fazia-me colocar o estetoscópio no seu tórax bem no local que determinava. Conferia com o esteto em seu ouvido. Válvulas, ictus... Naquelas duas horas de espera, aprendi muito sobre a escuta cardíaca. E repeti, a mando dele, inúmeras vezes.
O professor chegou e pediu para que eu fizesse o exame. E, com seu estetoscópio, conferia a minha ausculta. Notei que ele foi ficando sorridente. O paciente também. No corredor, o professor colocou o braço no meu ombro e disse: “Que bom terminar o ano examinando um aluno que realmente aprendeu. Vou te dar dez”.
Ao deixar o hospital, se por um lado me sentia bem, tinha passado sem exame, por outro algo dizia que eu estava agindo muito mal. Vi no paciente e no professor que a vida era coisa séria, profunda, coisa que se assume para valer. Lembrei dos bons médicos que haviam me atendido em minha infância e em minha adolescência: Telmo Ilha, Carlos Madaloso, Donadussi, Elton Ventura... Senti vergonha de continuar como adolescente aquaplanando sobre a vida.
Creio que o fato do paciente e do professor terem me levado a sério, me ajudou a passar da desesperança em que vivia para a esperança. Eu podia sim ser como eles e me tornar um adulto e caminhar como adulto em meio aos adultos.
No dia seguinte, voltei à enfermaria para agradecer ao meu paciente-professor. Mas ele acabara de ter alta. Nunca mais o vi. Não fiquei com o seu nome, mas fiquei com um imenso sentimento de gratidão: foi ele o paciente que me fez médico.
Abração!